'Para onde levo meus gatos?': moradores de Belém lutam contra obra em rio
"Ninguém foi consultado, não tivemos escolha, eles começaram a obra", comentou Maria Cecilia, 58 anos, moradora do bairro da Terra Firme, periferia de Belém, sobre o futuro remanejamento da sua casa de madeira, localizada à beira do Lago Verde, afluente do Tucunduba. O rio urbano passa por obras de macrodrenagem do governo do Pará.
Um movimento de resistência foi formado em 2021 por temer pelo futuro destes moradores. O coletivo Movimento Tucunduba Pró-Lago Verde afirma que a Secretaria de Estado de Obras Públicas (Seop), responsável pelas obras, apresentou tardiamente um plano de remanejamento, que não atende adequadamente as mais de 500 famílias que ali habitam. Outro ponto citado pelo movimento é que a obra não levou em conta questões ambientais ao transformar o rio em um canal de esgoto a céu aberto.
A capital paraense nunca tinha discutido tanto sobre meio ambiente e sustentabilidade quanto agora, depois do anúncio da cidade como sede da 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP-30) - que será realizada em novembro de 2025.
O engajamento às questões ambientais não ficou restrito ao poder público, a população também debate esses temas e cada vez mais tenta ter voz. Um dos seus questionamentos é a forma como as periferias, seus habitantes e rios urbanos são tratados pelos governantes na metrópole da Amazônia.
Periferias abandonadas
Para moradores de localidades afastadas do centro, historicamente os bairros "nobres" possuem um tratamento diferenciado e têm suas demandas atendidas — como segurança, infraestrutura, opções de lazer e a preservação das ruas e áreas verdes — e, acima de tudo, são ouvidos pelas instâncias governamentais, algo que, segundo os suburbanos, não ocorre nas "baixadas".
No curso do Lago Verde, que tem cerca de um quilômetro de extensão, habitam diversas famílias, ocupando áreas da União, atualmente de responsabilidade da Universidade Federal do Pará (UFPA) e da Superintendência do Patrimônio da União (SPU), que não recebem o mesmo empenho dado pelo Estado ao centro de Belém, sobretudo dos investimentos pré-COP, segundo a geógrafa Ana Luiza de Araújo, moradora do bairro e representante do Movimento Tucunduba Pró-Lago Verde.
"São famílias que habitaram lugares públicos e não têm a titulação da terra, a escritura pública, mas elas têm o direito do uso, estão há décadas ali. A questão da habitação é primordial", diz a geógrafa.
Essas famílias construíram a Terra Firme, elas aterraram, têm suas histórias de vida e ocupam o espaço como um abrigo, lugar da rede de proteção, de rede familiar.
Ana Luiza de Araújo, geógrafa
Memórias, afetos e incertezas
Morar na Terra Firme é uma questão de apego para Maria Duarte, 64 anos. Ali, ela viveu ao lado do esposo, que morreu de câncer há um ano e seis meses. Atualmente, ela cria dois netos e tem bichos de estimação em uma casa de alvenaria, ainda não concluída por conta das dificuldades financeiras da família, em frente à obra no Lago Verde.
Sua maior incerteza é para onde ir.
Eles [assistentes sociais] falaram que nós seremos indenizados, mas para onde eu vou levar os meus gatos? Onde vão jogar a gente? Quando cheguei aqui, há mais de 20 anos, era tudo só ponte. As pessoas conseguiram, aos poucos, transformar suas casas de madeira em alvenaria, e agora eles querem tirar. Eu não quero sair.
Maria Duarte
Lázaro Nascimento, 69 anos, conta que nasceu praticamente junto da Terra Firme e conhece o bairro desde quando era "tudo só mato". Ele mora em uma casa pequena de alvenaria, sem reboco, junto com filhos e netos, e diz sentir saudades da época anterior à da macrodrenagem do Tucunduba, iniciada na década de 1990, em que a área do Lago Verde era repleta de pássaros e árvores.
Newsletter
NÓS NEGROS
O Núcleo de Diversidade do UOL traz reportagens e análises relacionadas à população negra. Toda terça.
Quero receberAlgumas espécies ele mesmo ajudou a plantar. "Plantei um bocado de árvores, de ponta a ponta, tenho uma paixão pela natureza. Tinha coqueiro, castanheira, limoeiro e muito açaizeiro. Era bom demais! Ajudava a dar uma sombra, atava a rede na árvore e dormia à tarde todinha. Agora é tudo concreto!", desabafou o morador que perderá metade da sua casa por conta da macrodrenagem.
A boa relação da Terra Firme com a natureza e seu rio urbano, o Tucunduba, é ensinada desde cedo às crianças do bairro por meio do coletivo Chalé da Paz. O grupo, que existe há cerca de sete anos, promove atividades culturais, educacionais e de produção artística aos habitantes da localidade, explica o integrante Fabrício Souza, 22 anos. No final de setembro deste ano, foi feito um piquenique para meninos e meninas com objetivo de incentivá-los a zelar pelo local onde vivem.
Pensamos em como levar as crianças para conhecerem a realidade que elas vivem perto do rio Tucunduba. Elas puderam ver a carência e a poluição, a carência do poder público em ter um olhar mais singelo para nós como comunidade, periferia, que poderia ter iniciativas públicas para garantir um saneamento básico.
Fabrício Souza
Ele também mostrou para os pequenos as pessoas jogando lixo no rio. "As crianças nem têm noção porque são muito pequenas, acham normal o que todo mundo faz, mas nós tentamos mostrar que aquele comportamento é prejudicial para todos nós."
Macrodrenagem do Lago Verde
Em janeiro de 2023, o projeto, que era de responsabilidade da prefeitura, passou a ser executado pela Secretaria de Obras. A previsão de entrega é julho de 2024, e o projeto é realizado em três fases.
A Defensoria e o Ministério Público do Estado recomendaram a suspensão das obras por prazo indeterminado, até que o projeto seja readequado de acordo com um relatório apresentado pela UFPA, que ouviu a população da área. Mas os trabalhos não pararam.
Conforme as informações já divulgadas pela Seop, a obra, que faz parte do saneamento integrado do Tucunduba, é voltada ao desenvolvimento econômico ambiental e a gestão ambiental urbana, priorizando a recuperação de áreas degradadas e melhorando a mobilidade.
O coletivo denuncia supostos crimes socioambientais e afirma que a obra é considerada ultrapassada, em total dissonância às diretrizes da COP-30 para proteção das comunidades vulneráveis, sem clareza no Licenciamento Ambiental e sem pensar em arborização, espaços de lazer e cultura.
O grupo ainda afirma que representantes da Seop não comparecem nas plenárias do movimento, onde as propostas da comunidade são apresentadas. "Além do problema da habitação, também estamos muito focados na questão ambiental. Quando a gente pensa que estamos próximos de uma COP em Belém, observamos que obras do governo do estado não se preocupam com questões como tratamento de esgoto, arborização e a questão cultural também", diz Ana Luiza de Araújo.
"Acionamos a assistência técnica da UFPA, pela Clínica de Direito à Cidade e construímos uma proposta para apresentar à Seop sobre qual plano nós queríamos, que intitulamos de Corredor Socioambiental do Lago Verde. Infelizmente, o que a gente vê é que a Seop, não coloca em prática essas nossas proposições, direcionamentos, e entrega um projeto superficial de arborização, colocando só 40 árvores", continua a geógrafa.
De acordo com ela, o bairro da Terra Firme já tem uma história de luta dos defensores dos rios urbanos. "Aqui a gente tem esse histórico relacionado à questão ambiental e esperamos que isso possa ser respeitado, o que não vem ocorrendo."
O que diz a Seop?
A Secretaria de Obras Públicas informou, por meio de nota, que "a obra do Canal Lago Verde, no bairro da Terra Firme, faz parte do projeto de Macrodrenagem da Bacia do Tucunduba, que beneficia cerca de 300 mil pessoas e visa garantir a intervenção urbanística pautada no desenvolvimento econômico local e na gestão ambiental urbana.
Diz a nota: "A obra prioriza a recuperação de áreas degradadas, com a criação de corredores viários que trarão melhorias nas áreas de mobilidade urbana, saneamento básico, representando mais qualidade de vida para a população, além de minimizar os problemas de alagamentos".
A pasta ressalta que "tem participado ativamente das reuniões junto aos movimentos e entidades envolvidas para tratar de melhorias na execução dos serviços". E afirma que "o projeto segue todas as recomendações e condicionantes previstas em lei e está de acordo com as diretrizes de preservação e tratamento dos recursos hídricos existentes".
*
Acarajé ou akará? Só tem feijoada no Brasil? E quem são os "brasileiros-africanos" do Benin? Pela primeira vez na África, o chef João Diamante mergulha entre passado, presente e futuro da história e do sabor brasileiro. Assista agora "Origens - Um chef brasileiro no Benin":
Deixe seu comentário