Mulheres seringueiras lutam por direitos no Acre: 'Ajudantes são os homens'
"Até pouco tempo ninguém falava em mulher seringueira", diz Maria Araújo de Aquino, 57 anos. Há décadas ela trabalha duro na extração da borracha, mas reclama que, como tantas outras, não é reconhecida como produtora, apenas como auxiliar. No Acre, as extrativistas estão se organizando para mudar isso e lutar por direitos.
Filha de seringueiros, Maria Aquino vive há 50 anos no seringal Dois Irmãos, na reserva extrativista (Resex) Chico Mendes, em Xapuri, no Acre. Por lá, é conhecida como Leide.
Sobre o nome, ela explica que a mãe queria registrar assim, Leide Maria, mas o padre da região, que também fazia o registro, implicou. O 'Leide' não entrou no documento, mas ela sempre foi chamada desse jeito em casa. "Se perguntar pela Maria, ninguém sabe quem é", brinca.
Leide conta que muitas mulheres extraem a borracha, além de ajudar no processo. "É uma cadeia de produção que envolve toda a família, a mulher, os filhos, todos ajudam."
Para reduzir o abismo da desigualdade, as seringueiras decidiram se unir, como já fazem diferentes categorias de trabalhadoras rurais, que lutam para serem reconhecidas como tal.
Ainda há mulheres nos locais mais distantes que não participam de nada, mas já se avançou bastante, avalia ela. "Tem mulheres nas cooperativas, nas associações e até comercializando a própria borracha, e já se consideram produtoras também."
Ela também é um claro exemplo do avanço das mulheres. Leide é sócia em uma cooperativa de borracha e castanha, integra a direção da associação de moradores da Resex Chico Mendes e ainda ocupa o cargo de secretária municipal de agricultura e floresta de Xapuri.
Em busca da visibilidade
O movimento de organização das seringueiras começou a ganhar corpo há 11 anos com a criação de um fórum de mulheres, que abrange quatro municípios do Alto Acre, incluindo Xapuri.
"É um espaço de diálogo e articulação para dar visibilidade ao trabalho das mulheres seringueiras", explica Leide. O fórum inclui também outras categorias, como agricultoras e extrativistas indígenas.
Mas o objetivo é um só: garantir a participação delas nos espaços de decisão de políticas públicas, do processo de discussão e desenvolvimento da região.
No fórum, elas participam de muitas atividades e de muitas instâncias de deliberação. Uma das articulações mais recentes, de acordo com Leide, foi organizar a participação das seringueiras na 7ª Marcha das Margaridas, que aconteceu em Brasília em agosto.
A Marcha das Margaridas é uma ação liderada por trabalhadoras rurais em parceria com movimentos sociais, que há 23 anos luta por uma agenda de direitos para as mulheres do campo.
Entre as pautas, a ampliação da participação delas nos sindicatos, o acesso ao título da terra em seus nomes, antes restrito aos homens, além de acesso a crédito e a documentação.
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Quero receberO nome "Margarida" da marcha camponesa, que acontece a cada dois anos, é uma homenagem à paraibana Margarida Maria Alves, a primeira mulher que se tornou presidente de um sindicato de trabalhadores rurais no Brasil. Ela foi assassinada por fazendeiros em 1982.
A participação das seringueiras na marcha deste ano foi possível por meio de um projeto criado recentemente, chamado Mulheres da Borracha.
A iniciativa é uma parceria entre a ONG SOS Amazônia, a Resex Chico Mendes, cooperativas locais e a empresa francesa de tênis Veja (que no Brasil se chama Vert), que compra borracha de famílias de seringueiros do bioma amazônico.
O projeto viabilizou a participação de uma delegação de 65 mulheres no ato em Brasília, entre extrativistas, ribeirinhas, agricultoras, lideranças e técnicas. De Xapuri, foram 25.
Caminhos para novas lideranças
Com foco na igualdade de gênero, o projeto Mulheres da Borracha realizou, entre abril e setembro deste ano, 40 oficinas em dezenas de comunidades espalhadas por 14 dos 22 municípios acreanos.
As oficinas passaram por quatro das cinco reservas extrativistas no estado do Acre, duas florestas nacionais, seis projetos de assentamentos e por áreas de posse, onde há mulheres seringueiras, conta a bióloga Gabriela Antonia, 35 anos, coordenadora de projetos da SOS Amazônia.
Gabriela foi a responsável pelos workshops dentro das comunidades. "Fico mais no campo do que aqui [na sede da ONG em Rio Branco]".
Além das oficinas comunitárias, Gabriela diz que foi realizado no Alto e Baixo Acre um processo de formação de multiplicadoras - algumas delas já participaram da marcha em Brasília.
Ela explica que a ideia é avançar na pauta de gênero e abrir caminho para outras lideranças femininas, como a Leide do começo desta reportagem.
É muito importante falar dos direitos das mulheres rurais, das florestas, dos campos, das águas e de outros territórios também.
Gabriela Antonia, bióloga
As oficinas alcançaram mais de 1 mil mulheres. Mas ela acredita que o número real seja bem maior. "Estamos falando só das participantes com mais de 13 anos que assinaram a lista de presença, mas tiveram também homens que passaram pelas oficinas e as crianças."
'Ajudantes são os homens'
Mapear onde estão as mulheres na produção da borracha e entender como funciona essa cadeia de produção foram os objetivos principais do projeto nas comunidades. "Provamos que trabalham e onde trabalham", diz Gabriela Antonia.
Segundo a bióloga, a cadeia de produção começa a partir do momento em que a família vai para dentro da floresta mapear as seringueiras, depois começam abrir e limpar a estrada, cuidar das árvores.
A coordenadora da ONG defende que fazer as mulheres seringueiras entenderem onde estão foi muito importante para que percebam que não são apenas ajudantes. "Não adianta irmos lá só dizer isso, elas precisam entender."
O contexto em que vivem as extrativistas é parecido com o da sociedade em geral que, historicamente, reconhece mulheres como ajudantes de tudo, compara Gabriela.
"Nós não ajudamos, nós fazemos, inclusive muito mais do que eles, se existem ajudantes são os homens."
No caso das mulheres seringueiras, o projeto identificou que elas estão principalmente limpando as estradas, coletando, prensando a borracha, lavando, isso sem falar da cozinha, da casa, das crianças, dos bichos, ressalta a bióloga da SOS Amazônia.
Onde elas 'não' estão?
O trabalho junto às comunidades acabou revelando mais do que a pergunta central, ou seja, se tem ou não mulheres na cadeia de produção da borracha. "Já sabemos que tem", diz Gabriela Antonia. O outro ponto importante que o mapeamento revelou foi onde elas 'não' estão.
"Elas não estão no cadastro das cooperativas, não estão vendendo, não estão recebendo e não decidem o que fazer com o dinheiro que o marido recebe", pontua a coordenadora do projeto. Essa falta de tomada de decisão reforça a ideia de que as mulheres estão apenas ajudando.
E não ser parte reconhecida - acrescenta a bióloga - as leva para um lugar semelhante ao do trabalho doméstico. "Faz por amor à família. Além de cuidar da casa, filho, bichos, ainda trabalham fora, mas não conseguem ascensão, e, se houver separação, por exemplo, o marido vai embora, leva tudo, diz que trabalhou a vida inteira sozinho."
Outro recorte que o mapeamento mostrou foi que quase não há homens solteiros, viúvos ou divorciados na cadeia de produção da borracha. E quando estão sós, relatam muita dificuldade. Em geral, quando se separam ou ficam viúvos, saem da atividade.
Para a coordenadora do projeto, isso evidencia que sem a família e sem as mulheres, a produção da borracha para.
Só que na hora do reconhecimento são os homens que se destacam.
Gabriela Antonia, bióloga
Matriarca dos seringueiros
A reportagem de Ecoa passou alguns dias na casa de Raimunda Ferreira Conde, 64 anos, considerada a matriarca dos seringueiros. Ela é conhecida na região como dona Conde, ou vovó Conde, como é chamada por 'aproximadamente' 12 netos. "Já perdi as contas", diz ela. Os tantos netinhos são de quatro de seus cinco filhos.
Ela é de Xapuri, mas o pai era nordestino. Migrou de Recife para ser um dos muitos "soldados da borracha", nome dado aos trabalhadores recrutados para trabalhar como seringueiros na Amazônia e abastecer a indústria bélica americana na década de 1940.
Dona Conde conta que o pai chegou ao Acre com 18 anos, iludido com as promessas que ouviu. "Achava que aqui era um lugar muito bom para ganhar dinheiro, diziam que ia ficar rico, que puxaria dinheiro com rastelo."
Quando chegou, viu que o negócio era bem diferente. E o tal dinheiro que iria puxar com rastelo nunca apareceu. Dona Conde seguiu o caminho do pai, e atravessou o período mais violento para os seringueiros, que escalou a partir da década de 1970, durante a crise da borracha.
Os fazendeiros que compraram as terras dos antigos patrões vieram com uma visão diferente, da pecuaria, queriam derrubar os seringais.
Raimunda Ferreira Conde
Ela conta que chegou a participar de alguns empates, como eram chamados um método de resistência pacífico criado pelos seringueiros para impedir o avanço das motosserras na derrubada dos seringais para a criação de pastagens de gado.
"Quando o fazendeiro comprava o seringal, queria derrubar tudo, retirava os moradores à força, tirava tudinho, alguns saíam, aquele que não tinha coragem de reagir, arrumava sua trouxinha e ia embora, mas muitos não iam e resistiam, morreu muita gente nessa época", recorda dona Conde.
Era uma época em que o debate sobre gênero e a informação de modo geral passavam longe da vida das mulheres trabalhadoras da zona rural. "A realidade só começou a mudar para os seringueiros com o surgimento do sindicato que o Chico Mendes criou", observa dona Conde. Eles logo se tornaram amigos.
O Chico Mendes andava muito pela floresta, pelos seringais, viu que tinha muita gente analfabeta, percebeu a necessidade dos seringueiros aprenderem a ler, escrever e a fazer as quatro operações, para saírem da mão dos marreteiros que (vendiam mercadoria e comprava borracha).
Raimunda Ferreira Conde
"Problema está na ganância"
Foi por meio desse movimento, que ela, que só tinha o ensino primário, terminou os estudos e fez faculdade de história. Hoje, ela é professora aposentada. "Tem muitos por aqui que já foram meus alunos e que hoje também vivem uma vida melhor."
Apesar de aposentada, ela segue na ativa dentro do movimento dos trabalhadores seringueiros e apoiando a luta das mulheres extrativistas. Mas ela teme pelo futuro e pelo avanço do desmatamento até dentro da reserva.
"Muitos aqui [na reserva] estão fazendo venda de madeira clandestina, acham que tem de criar gado, derrubar a mata e plantar capim", relata dona Conde. Em alguns lugares, segundo ela, "os pastos estão avançando tanto que ninguém vê mais a mata perto."
O problema está na ganância. Tem muita gente plantando, fazendo horta, se esforçando, mas tem outros que espalham uma 'conversa negativa', que ninguém ganha dinheiro vendendo verduras.
Raimunda Ferreira Conde
"Não é para 'enricar', é uma ajuda de custo que entra para somar com outras coisas, como a criação miúda de galinha, porco, pato", pondera. Segundo ela, é dessa forma que muitos na região vão 'desapertando' as contas.
"Já outros acham que dinheiro só é bom se for ganhando muito e por isso vão para a criação de gado". Eles ganham agora, mas depois todos perdem, porque a conta não fecha, prevê a matriarca. "Para terem lucro, precisam de bastante pasto e aí o jeito é derrubar muita floresta", lamenta dona Conde.
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