'Já coloquei 1 litro de óleo no macarrão': ela ensina a cozinhar sem visão

"Não sei como vai acabar esse macarrão. Não prometo nada", avisa o funcionário público Luiz Eduardo Dodek, 42 anos, enquanto cozinha com a massoterapeuta Talita Gallo, também de 42.

Cegos, os dois são amigos há mais de 20 anos e mostram que a deficiência visual não é barreira para se aventurar na cozinha e preparar pratos deliciosos —-bom, pelo menos no vídeo que mandaram para a reportagem de Ecoa, a massa parece muito boa.

Eles se conheceram antes mesmo de Talita lançar no YouTube o canal Cegas na Cozinha, em que ensina receitas simples de um jeito acessível pra quem tem baixa ou nenhuma visão.

"As pessoas costumam perguntar coisas do tipo: 'Como ver se a carne está dourada', então ensino a bater com a parte de trás da colher. Se escutar uma casquinha, é porque está quase no ponto. Trago o abstrato para o concreto", ensina Talita, que vive em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo.

Talita nasceu com glaucoma congênito e tem apenas 2% de visão no olho direito. Mas isso não a impediu de se formar em psicologia nem de se aventurar na cozinha desde cedo, sempre contando com o apoio de familiares.

Apoio fundamental para a autonomia

Ela destaca a importância desse acolhimento para que as pessoas com deficiência possam desenvolver sua autonomia. "Sempre fui curiosa e ajudava nos almoços de domingo em família, com o apoio de parentes, seja para descascar uma laranja ou acender o fogão."

O apoio de parentes, ela frisa, é importante para deixar a pessoa com deficiência ter sua autonomia. Talita salienta que, caso contrário, se não confiarem na sua capacidade, ela pode nunca desenvolver seus instintos.

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Tanto que durante suas consultorias online para pessoas com deficiência visual ela diz que sente muito que esse público tem dificuldade de se virar sozinho tamanha a superproteção em casa.

Tem gente que pergunta como tirar a mãe de dentro da cozinha.Talita Gallo

E foi assim, cozinhando para amigos e parentes, e ouvindo muito desses questionamentos, que Talita resolveu se aventurar no Youtube. E é ela quem filma e edita todo o material.

"Comecei a fazer vídeos bem descritivos, apontando, por exemplo, que estava na boca do fogão, mostrando a distância de um dedo para cortar o alimento. Também falo muito de texturas, do aroma, porque assim fica mais próximo da realidade", descreve ela, que ama cozinhar massas e arroz de forno.

Erros e improvisações

Mas, para chegar a esses macetes, claro que houve muito erro. Que o diga seu amigo Luiz Eduardo, que jogou toda a garrafa de 1 litro de óleo em cima do primeiro macarrão que preparou, achando se tratar de molho de tomate.

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Nascido em Barretos (SP), Luiz tem uma síndrome degenerativa da retina que provoca seu descolamento, e perdeu 90% da visão com 9 anos de idade. Mas sempre foi estimulado pela mãe a fazer absolutamente tudo em casa. "Por causa dela, limpo banheiro como ninguém", brinca.

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Imagem: Reprodução

Hoje falando com bom humor, diz que passou pela fase de questionamentos e depressão por causa da sua condição, mas seguiu em frente e até aprendeu a dirigir moto e carro.

Eu não tenho limite. Costumo brincar que, das deficiências que eu tenho, a mais leve é a visual. Luiz Eduardo Dodek

Como a amiga Talita, parou na cozinha por curiosidade, e hoje, morando sozinho, diz se virar bem. Recentemente preparou até uma costela para amigos, e um espeto de carne para a mãe. Mas gosta mesmo é de pratos com molho, como estrogonofe, macarrão e lasanha.

"Acho que não entendem que conseguimos fazer tudo porque não há mais interatividade entre a pessoa com deficiência e a sociedade", observa.

Falta inclusão

Moradora de Brasília, a massoterapeuta Sheila Sá, 58 anos, concorda e complementa que se os programas de culinária se preocupassem em descrever mais as receitas para o público de baixa visão resolveria parte desse problema.

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"Esses programas famosos na TV falam para um público dito normal. Ouço 'aqui você corta assim, você corta nesse sentido', mas não entendo. Tem que apontar, falar a posição da faca se for cortar a cebola em quadradinhos, por exemplo."

Seguidora do canal de Talita, Sheila nasceu com catarata congênita, glaucoma e sofreu alguns descolamentos de retina ao longo dos anos. E após a primeira gravidez, teve a perda total da visão, aos 27 anos.

Nascida em Fortaleza e criada com muitos cuidados por conta de sua condição, não teve quem a ensinasse a fazer sozinha tarefas básicas, e foi improvisando na observação mesmo.

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Imagem: Reprodução

A cozinha virou uma paixão a partir dos 12 anos, e recentemente ela até se arriscou num concurso em que precisava criar um petisco. Não ganhou, mas gostou da experiência. Hoje, cozinha para visitas e faz cursos de culinária.

A gente acaba lançando mão dos demais sentidos. Consigo sentir a carne gratinando com o som do queijo borbulhando.
Sheila Sá

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São esses sentidos que Talita quer aguçar mais no seu público e agora prepara uma série de material no seu canal. "Quero trazer pratos mais elaborados e também dar dicas de como os restaurantes podem atender melhor a pessoa com deficiência como investir num cardápio em braile bacana. Vem novidade por aí."

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