Justiça com as próprias mãos? Prática é criminosa e aumenta violência

Em 2 de dezembro, um homem foi nocauteado na zona sul do Rio de Janeiro por criminosos ao tentar ajudar uma mulher que foi assaltada pelo bando instantes antes. Dias depois, vídeos nas redes sociais mostraram homens agindo como justiceiros, prometendo espancar suspeitos de roubos nas ruas. Em meio à "onda de justiceiros", na quarta (6), um vendedor de balas foi agredido por um garçom, que o teria confundido com um ladrão.

Na quinta (7), o deputado estadual Anderson Moraes (PL-RJ) propôs uma lei para que cidadãos do Rio de Janeiro possam atuar como "guardiões", apoiando o policiamento em áreas com altos índices de roubos e furtos. O PL propõe que os envolvidos recebam treinamento e equipamentos para imobilização dos suspeitos, além de que poderiam ser pagos por criminosos presos.

A escalada de violência acende não só uma sensação de insegurança, mas também a ideia de que o justiçamento (justiça com as próprias mãos) pode ser uma saída.

Ecoa conversou com juristas, advogados e sociólogos para explicar por que a atitude, além de perigosa, pode tipificar crime, agravar o problema e desonerar o Estado de suas obrigações.

Justiça com as próprias mãos e o abandono do Estado

Ter seus bens subtraídos ou a integridade física atacada são situações revoltantes, mas tentar punir suspeitos por conta própria pode entrar em uma esfera contínua de problemas, alerta Rogério Sanches Cunha, professor de direito penal e processo penal, promotor de Justiça de São Paulo, representante do MPSP na Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

Essa onda de violência pode gerar ainda mais violência, no conhecido efeito manada. A partir do momento em que um grupo de pessoas começa a fazer justiça pelas próprias mãos, você atrai pessoas que se apresentam como justiceiros para fazer a mesma coisa, e se pode perder absolutamente o controle. A partir do momento que se tem justiceiros, um pouco do controle já foi perdido. Rogério Sanches Cunha, professor de direito penal e processo penal, promotor de justiça de São Paulo, representante do MPSP na Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

No entanto, o promotor aponta que o despertar da ideia de justiçamento é fruto de uma falta de confiança da sociedade.

"A partir do momento em que a sociedade resolve fazer justiça com as próprias mãos, é porque ela não confia mais no estado punitivo nem no monopólio do poder estatal de punir, ou porque imagina que o Estado é inerte e as respostas ficam muito aquém do que se espera", diz Cunha.

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Cunha afirma que é importante assegurar a qualquer pessoa autora de crime o processo legal, e lembra que isso não é sinônimo de impunidade, mas de punição justa.

"Temos que cobrar mudanças no executivo e no legislativo. No executivo, postura de segurança pública, e no legislativo, leis eficientes. Mas não acredito que essa mudança dependa necessariamente do aumento das penas, mas a certeza de que as penas aplicadas serão executadas", defende o promotor.

Violência pode virar "bola de neve"

Desencadear uma onda sucessiva de "vinganças" e de mais violência também foi um problema apontado por Bruna Andrade, advogada, mestre em proteção dos direitos humanos .

Quando se permite uma justiça privada, gera-se uma descredibilização da Justiça, isso em longo prazo é péssimo, pois voltamos ao retrocesso em que as infrações eram reprimidas de forma desproporcional, gerando vingança sobre vingança. Bruna Andrade, advogada, mestre em proteção dos direitos humanos

Cunha vê o risco de uma "bola de neve" de violência. "Se um grupo de pessoas atinge alguém inocente, ou castiga de forma não moderada, pode estar dando margem a outro grupo ao qual pertença essa vítima a agir de forma também desproporcional. Por isso, o estado tem que chamar para si essa responsabilidade", defende o promotor.

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"Já tivemos num passado distante os familiares da vítima decidindo qual seria a punição a um agressor/criminoso, e [a história] mostra que isso era completamente desastroso, com respostas desproporcionais, era um período de não direito querendo prevalecer sobre o direito", continua ele.

Prática é criminosa

A ação é juridicamente inviável, alerta Marcelo Carita Correra, mestre em direito penal pela PUC-SP. "Com exceção da legítima defesa e do estado de necessidade, o particular não pode fazer uso da força em face de outra pessoa. Não se pode, como pretendem os justiceiros de Copacabana, localizar e punir pessoas que, supostamente, tenham praticado crimes. Não há hipótese em que essa situação seja vista como viável juridicamente", explica.

De acordo com Correra, o próprio termo justiceiro induz a pensar que se trata de fazer justiça, mas a verdade é que, em sua própria concepção, já se demonstra a ilegalidade.

Entre os crimes cometidos, podem estar:

a própria criação dos grupos, que podem configurar associação criminosa (288 do Código Penal), quando três ou mais pessoas se unem para praticar crimes;

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constituição de milícia privada (288-A do Código Penal), caso esse grupo tenha características paramilitares ou de um esquadrão.

O mestre em direito penal ainda lembra que as pessoas envolvidas respondem particularmente por seus atos, e entre os quais podem estar:

constrangimento ilegal (art. 146 do Código Penal);

ameaça (147 do Código Penal);

lesão corporal (art. 129 do Código Penal);

homicídio ou tentativa de homicídio (art. 121 do Código Penal);

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porte ilegal de arma de fogo (Estatuto do Desarmamento);

exercício arbitrário das próprias razões (art. 345 do Código Penal);

sequestro e cárcere privado (art. 148 do Código Penal).

Termina em "injustiça"

Correra também enxerga que há a possibilidade de que determinadas pessoas aproveitem o momento para realizar atos de violência contra desafetos. "Acusando-os de serem criminosos e que, dessa forma, precisam ser contidos pela população", comenta.

O sociólogo Tulio Custódio, que pesquisa e estuda pensamento social e relações raciais, enxerga a ação do racismo estrutural nessas ações criminosas. "A construção da imagem do criminoso vai passar pelos elementos de racialização e estigma racial", comenta.

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Para Custódio, a criação de grupos justiceiros está ligada a uma ideia de condominização da sociedade. "Esse tipo de organização aparece nessa coisa do bairro, do território, manter nossa região cercada e protegida de elementos externos. Cercar um território e ele será separado e dividido por pessoas iguais. Essa lógica amplia as separações e polarização da sociedade e da desigualdade", acredita.

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