Emergência na Amazônia: como a seca e o calor extremo ameaçam os botos?

Não são apenas animais de regiões distantes, como ursos polares do Ártico, que têm a sobrevivência ameaçada pelo aquecimento global. No Brasil, a morte recente de quase 300 botos das espécies vermelha e tucuxi na Amazônia mostrou que as mudanças climáticas são uma emergência real a ser enfrentada.

Ainda sob investigação pelo ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), a mortandade dos mamíferos nos lagos Tefé e Coari, no interior do Amazonas, nunca havia sido registrada em um nível tão alarmante.

Para se ter uma ideia da gravidade da situação, somente em 28 de setembro, foram encontradas 70 carcaças de botos no lago Tefé. Nesse dia, a temperatura dentro da água alcançou os 39,1ºC em um trecho com dois metros de profundidade. A estimativa é de que, somente nesse lago, cerca de 10% da população de botos tenha morrido no período de uma semana.

Embora ainda não seja possível apontar a causa exata da morte desses animais, o estresse térmico a que foram submetidos e a seca que deixou milhares de ribeirinhos ilhados na Amazônia tornam esse contexto ainda mais grave.

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Imagem: André Coelho/Instituto Mamirauá

Mas como a estiagem e o aumento das temperaturas afetam esses animais? Qual o impacto da morte de botos no ecossistema amazônico? E qual o caminho para evitar novos episódios como esse, considerando as previsões para um 2024 ainda mais quente? Ecoa ouviu especialistas na área para esclarecer essas questões.

Como a falta de chuvas e o aumento nas temperaturas afetam animais aquáticos?

Pesquisador do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, que atua na região onde as carcaças foram encontradas, Ayan Santos Fleischmann explica que, embora se tivesse previsão de seca na região, não se imaginava que a estiagem fosse tão forte neste ano - a última grande seca no estado havia sido em 2010.

Em setembro, no entanto, o nível do rio Solimões, próximo a Tefé, começou a diminuir rapidamente, descendo até 30 centímetros por dia. Paralelo a isso, a temperatura máxima do ar passou a bater recordes em diversos municípios, associada a uma baixa umidade que favoreceu a incidência de queimadas e impactou a qualidade do ar.

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Foi uma combinação de desastres. Essa onda de calor também aconteceu nos lagos. Em Tefé, medimos 41ºC em um trecho com um metro de profundidade. Estamos falando de um impacto muito grande para ecossistemas que não estão adaptados a temperaturas extremas.
Ayan Fleischmann, pesquisador

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Imagem: Miguel Monteiro/Instituto Mamirauá

Durante medições mensais, a média da temperatura do lago costumava ficar em 29,7ºC, podendo alcançar até 35ºC. Ainda segundo o pesquisador, as temperaturas altas associadas à redução dos níveis do rio e ao aumento da radiação solar em dias sem nuvens levaram ao aquecimento rápido do lago, que também registrava uma grande amplitude térmica ao longo dia.

Às 9h, por exemplo, os termômetros marcavam 28ºC, já às 16h, 38ºC. Diferentemente de algumas espécies de peixes, os botos não conseguiram deixar esses pontos mais aquecidos.

Até o momento, nossos achados indicam que houve um estresse por hipertermia. O corpo dos botos não aguentou a temperatura alta desses lagos.
Mariana Paschoalini Frias, especialista do WWF-Brasil

Mariana explica que os botos são como nós, conseguem regular a temperatura térmica do corpo, mas quando esse aumento ocorre rápido demais, perdem essa capacidade de autorregulação e entram em choque metabólico.

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Outras causas para a mortandade dos botos já foram descartadas?

Sim. Conforme Mariana, não há indicação de doenças pré-existentes, vírus ou bactérias que possam ter levado esses mamíferos a óbito.

Mesmo que amostras desses animais ainda estejam sob análise laboratorial para determinar a causa das mortes, o entendimento é de que a seca amazônica e as altas temperaturas estão fortemente relacionadas a esses casos.

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Imagem: Miguel Monteiro/Instituto Mamirauá

Qual o papel dos botos no ecossistema amazônico?

A especialista em Conservação do WWF-Brasil observa que os botos são predadores que estão no topo da cadeia, alimentando-se de mais de 50 tipos de peixes. "Eles fazem o controle populacional de outros animais, são um termômetro de onde tem mais peixes e áreas mais saudáveis. Os pescadores costumam dizer que, se tem boto, tem peixe", comenta Mariana.

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Ela explica que as mortes nos lagos Tefé e Coari são um indicativo de como o evento climático foi extremo para fauna e seres humanos. "Milhares de pessoas ficaram sem acesso à comida, água, remédios."

Especialista em mamíferos aquáticos da Amazônia, Miriam Marmontel, também pesquisadora do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, acrescenta que os botos ajudam a manter a comunidade de peixes saudável para o consumo humano e que são considerados animais sentinela dentro do ecossistema da região.

Eles [os botos] nos mostram que algo muito sério está acontecendo naquele ambiente.
Miriam Marmontel, pesquisadora

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Imagem: Miguel Monteiro/Instituto Mamirauá

Qual o caminho para evitar que essa situação com os botos se repita?

Previsões da Organização Meteorológica Mundial (WMO, na sigla em inglês) apontam que 2024 deve registrar temperaturas ainda mais intensas. A emergência ambiental deste ano foi uma oportunidade de aprendizado sobre como lidar com a crise climática na ponta, segundo os especialistas.

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Apesar de não terem boas perspectivas quanto ao clima em 2024, eles argumentam que desenvolveram capacitações para dar respostas rápidas em situações semelhantes, seja no resgate de animais de áreas superaquecidas ou para ao menos afastá-los de zonas críticas por meio da criação de cordões nos lagos com temperaturas mais altas.

Estamos tentando criar um sistema de alerta preventivo, usando modelo climáticos, para que, ao ver qualquer movimentação similar ao que aconteceu, os especialistas estejam preparados para agir.
Mariana Paschoalini Frias, especialista do WWF-Brasil

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Imagem: André Coelho/Instituto Mamirauá

O trabalho deve seguir com monitoramento da fauna aquática e da temperatura e qualidade da água, em busca de dados que auxiliem nessa tomada de decisão, acrescenta Miriam Marmontel.

Ela pontua, no entanto, que o enfrentamento de episódios extremos como esse envolvendo os botos vermelhos e tucuxi deve envolver também ações contra as mudanças climáticas para além daquela região. "Precisamos, como sociedade, de mudança de comportamento e atitude. Vamos ter que diminuir nossa pegada ecológica e isso não é uma pessoa ou grupo apenas. Precisa ser um movimento mundial", alerta.

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