Fazer turismo em favelas: sim ou não? Moradores e estudiosos opinam
Priscila Carvalho
Colaboração para Ecoa, no Rio de Janeiro
20/12/2023 04h05
Quando visitei a Comuna 13 em Medellín, na Colômbia, me surpreendi com a quantidade de tours oferecidos aos turistas diariamente. Ao chegar lá, vi centenas de gringos tentando entender um pouco do lugar que já foi considerado um dos mais perigosos do país, principalmente na década de 90.
Mas essa realidade mudou e o que antes era visto como perigoso, se tornou um dos principais pontos turísticos por quem passa pela segunda maior cidade do país.
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O tour começa perto da estação de metrô, ponto de encontro em que o guia te espera e sobe para as vielas da Comuna 13. Por lá, passamos por espaços de arte, pintura, lojas de roupas e artesanatos, ouvimos as histórias do passado, até chegar em um mirante com uma vista de toda a cidade.
O passeio me lembrou um pouco a visita que fiz à Rocinha, maior favela do país, localizada na zona sul do Rio de Janeiro. Embora as duas tenham aspectos semelhantes, as propostas mudam bastante.
No da capital fluminense, senti mais autenticidade entre os moradores e os guias, com incentivo ao comércio local.
Já na cidade de Medellín, essa atividade já é marcada pelo "overturismo", que caracteriza-se pela visita excessiva e com fins comerciais massivos. Não senti uma preocupação com os turistas, além de muitos itens de lembrancinhas não serem feitos pelos locais, mas, sim, produzidos e importados de outros países.
Como surgiu o turismo em favelas?
Embora a ideia pareça nova ou até estranha para alguns, o turismo em comunidades no Brasil e no exterior não começou agora. Ele ganhou força no final dos anos 90 e tinha o objetivo de mostrar o "exótico" para os estrangeiros.
"Sempre teve um interesse dos europeus pelas populações que eles consideravam 'exóticas'. Sempre tinha isso quando retratavam os indígenas. Era como se fosse uma romantização do indígena e do pobre", destaca Luiz Gonzaga Godoi Trigo, professor do curso de lazer e turismo da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.
A origem desse tipo de turismo, segundo os especialistas, veio da pobreza extrema e dos safáris humanos que ocorriam na África e também na Índia. Muitas vezes, europeus brancos iam até cidades desses países para observar o "diferente".
Como era algo lucrativo, a prática logo foi trazida para a América do Sul. Na Colômbia, essas visitas começaram para contrapor a história de violência, que envolvia grupos paramilitares e traficantes.
Já no Brasil, o movimento foi crescendo com a expansão da periferia carioca e outras cidades pelo país. Um marco importante e que fez com que todos enxergassem uma favela foi o clipe "They Don't Care About Us", do cantor Michael Jackson, que gravou as cenas em 1996 no morro Dona Marta, no Rio de Janeiro.
"Ali a favela chamou atenção do mundo todo", diz Luciana Holanda, professora do Departamento de Turismo e Hotelaria da UFPE (Universidade Federal do Pernambuco).
Espetáculo ou turismo comunitário?
Quando o turismo nas favelas chegou ao Brasil, os primeiros tours eram organizados em carros de safári, dando a impressão de que os moradores eram animais e que estavam lá para serem observados. Segundo a professora da UFPE, nos últimos dez anos, essa prática chegava a receber 3.500 turistas por mês.
Gilmar Lopes, guia de turismo e morador da Rocinha, 37, reforça que no passado a maioria dos moradores não gostava desse tipo de turismo. "Quando o turista não caminha pela comunidade, não há interação entre ele e quem mora lá, dando a impressão de lugar 'hostil', que não dá para sair do carro e interagir", diz ele, que trabalha como guia há cinco anos e recebe turistas estrangeiros e brasileiros quase diariamente.
Por muitos anos, essa realidade seguiu, mas depois de duras críticas, as visitas nesse formato deixaram de ser realizadas. Atualmente, quem vai até as comunidades, principalmente as cariocas, se depara com um tour feito até certo ponto de mototáxi e depois segue a pé com um guia que, na maioria das vezes, é nascido e criado lá.
Essas ações também reduzem a ideia de que a comunidade é um ambiente marginalizado e inseguro para os turistas.
Contudo, ainda há quem pense que esse tipo de visita é desrespeitosa, principalmente com as pessoas que moram no local.
"Mesmo agências de fora têm feito um trabalho e isso tem ajudado bastante a dar mais visibilidade à comunidade e para a economia local também", destaca Gilmar.
Trigo, professor da USP, reforça que o turismo em favelas pode ser benéfico e inclusivo, desde que o visitante não vá com pensamentos preconceituosos.
Quando ocorre uma espetacularização dos moradores e suas casas, aí sim é considerado algo ruim. "A favela não pode ser um objeto de curiosidade para quem está de bem com a vida. O turista não deve ir com um ar superior, de 'senhorzinho' de engenho. A escravidão marcou muito e o Brasil foi o último país a acabar com isso", reforça o especialista.
A professora da UFPE também defende que o turismo comunitário pode ser algo bom para as favelas, porém é preciso que o morador seja beneficiado com isso. "Não adianta uma agência promover isso e o morador ou o líder comunitário não ficar com quase nada do dinheiro das atividades exercidas no local ou ser prejudicado", diz.
É importante que o visitante conheça e explore bem a comunidade, além de consumir os produtos locais. Vale ressaltar ainda a importância de conhecer e explorar o bar de alguém dali, experimentar uma feijoada, curtir uma roda de samba. Atividades que realmente fazem parte do cotidiano dos locais.
O que dizem os moradores
O incômodo de receber visitas na comunidade ficou no passado, de acordo com os moradores das comunidades da Rocinha e do Vidigal, ambas na capital fluminense.
Muitos alegam que não enxergam como um desrespeito, mas, sim, uma valorização do espaço em que moram. Se é possível morar ali, por que não receber turistas?
Lourdes Colen, 42, mora na Rocinha há 20 anos e tem uma lanchonete que vende salgados e sucos naturais. Para ela, o turismo no local é positivo.
"A rentabilidade vem com o turismo e minha renda é maior. De forma alguma acho desrespeitoso. Eles vêm conhecer a vida das pessoas aqui, como é a vida na favela. Faz parte da nossa vida", diz.
Ela ainda afirma que mora no local por opção e agradece por viver na Rocinha. Quando questionada se mudaria dali, ela é categórica na resposta: "Eu amo esse lugar. Com todas as adversidades, não trocaria nem por Copacabana."
Conversando com moradores, é possível ver que muitos deles têm um sentimento de pertencimento e não enxergam o local como algo marginalizado. Como Lourdes mencionou, há problemas, mas o lugar não apresenta só aspectos negativos.
Ana Lima (@trilhadoisirmaos) trabalha como guia no Vidigal há 13 anos e também enxerga o turismo como algo benéfico. Ela auxilia turistas estrangeiros e brasileiros a fazer a trilha dos "Dois Irmãos", além de alugar um espaço dentro da comunidade para hospedagem.
"O turismo movimenta ainda mais a economia local. E sendo guiado, o guia explica em cada passeio mais sobre a nossa história, costumes, projetos sociais de vários esportes. E, assim, projeta novos olhares sobre nosso território", diz a guia, que nasceu e cresceu na comunidade.
Ela ainda acrescenta que "promove o intercâmbio e acha importante contar a história do Vidigal sobre o olhar de dentro".
Tanto Ana quanto Gilmar reforçam a importância de um guia local para melhorar a percepção do turista ao visitar determinada favela. "É muito importante um guia local, pois dá mais valor a própria comunidade, o guia local conhece a favela, a vivência nela. Por isso consegue falar com mais propriedade", afirma Ana.
Por que visitar uma comunidade?
Não é só o Rio de Janeiro ou São Paulo que oferecem visitas às comunidades. Cidades como Salvador, Recife e outras também realizam esse tipo de turismo. "Em Recife, a gente tem duas experiências e a comunidade é protagonista", diz a professora da UFPE.
E se você nunca pensou que poderia fazer visitas dessa forma, pode ser algo fora do óbvio ao conhecer um novo lugar no Brasil. Além de fugir de visitas tradicionais.
A vantagem do turismo comunitário, segundo os especialistas, é conhecer a história daquela comunidade, além de saber mais sobre o próprio Brasil e seus ancestrais.
Também proporciona uma melhora na economia de cada lugar. Mas, claro, como já falado, é preciso estar aberto para ouvir e aprender sobre determinada história e experiências locais. "Nunca vá com aquela visão de colonizado e colonizador", reforça a especialista da UFPE.
Embora esse tipo de turismo seja cada vez mais comum nas grandes cidades, Holanda acrescenta que é necessário mais apoio de órgãos municipais para que essas atividades se sustentem em longo prazo e possam, sim, ser a única fonte de renda das pessoas que moram nesses locais.
"Muitas das comunidades não conseguem seguir sem um auxílio interno. É preciso investir em capacitação. Conciliar autenticidade e aspectos mercadológicos", conclui a especialista.