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Boi pasta onde era rio: expedição pelo Amazonas analisa estragos da seca

Gado pasta onde costumava haver um rio. Marca escuro no tronco demonstra a altura que a água costumava alcançar Imagem: Tiago da Mota e Silva

Tiago da Mota e Silva

Colaboração para Ecoa

15/01/2024 04h04

A Amazônia está mudando. Desde setembro de 2023, a região passa pela mais grave seca já registrada.

As fortes ondas de calor, com temperaturas próximas aos 40ºC, e a vazão recorde das águas de rios e lagos colocaram a região sob estresse, afetando pessoas, animais, plantas, fungos, micro-organismos, insetos, águas e solo.

Para entender as consequências disso, 18 cientistas e um total de 33 tripulantes partiram de Manaus em uma expedição científica pelo interior do estado do Amazonas, que durou 14 dias, entre 21 de novembro e 5 de dezembro de 2023.

"A gente mediu alguns parâmetros que indicam grande estresse nos animais, especialmente nos peixes amazônicos", detalha o biólogo Adalberto Val, organizador da expedição.

Adalberto Val avalia situação do Lago do Prato, em Anavilhanas (AM), durante seca histórica Imagem: Tiago da Mota e Silva

Dal, como costumam chamá-lo, é pesquisador sênior do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas Amazônicas) e coordena o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Adapta, que estuda a adaptação de organismos aquáticos da Amazônia às mudanças climáticas.

O Lago do Prato

O primeiro destino da viagem foi o Parque Nacional de Anavilhanas. Situada no leito do Rio Negro, Anavilhanas é um arquipélago com aproximadamente 400 ilhas e 60 lagos, que estendem-se por mais de 160 km. Na época de cheia, suas matas alagadas oferecem abrigo e alimento para 368 espécies de peixes.

O Lago do Prato é um dos grandes lagos da região. Na época de cheia, costuma se conectar ao Rio Negro em três pontos, inundando parte da floresta ao seu redor. De ponta a ponta, ele se estende por cerca de 3,5 km e, de largura, pode chegar a 1,5 km. Mesmo durante estiagens, comuns a cada ano entre setembro e novembro, a água costuma cobrir toda essa área.

Base Flutuante do ICMBio, em Anavilhanas (AM), onde a equipe de cientistas montou um laboratório improvisado Imagem: Tiago da Mota e Silva

Os sinais da seca já eram evidentes no caminho até o lago. Era possível ver o quanto o rio desceu pela marca da água nos troncos das árvores que ficam nas margens. Em alguns pontos, a distância das marcas até o nível da água chegava a 8 metros.

A cena vista pela expedição ao se aproximar do Prato foi de causar espanto. Praticamente a metade do lago estava seca, com o solo craquelado devido ao sol forte e tomado por grama. Não havia mais conexão entre o lago e o rio.

Eu nunca vi algo assim. Esse lugar ficava cheio de botos. Acho que não voltaremos a pescar aqui Francisco Fonseca, pescador a serviço do Inpa há 45 anos e participante da expedição, ao avistar a paisagem sequiosa do lago

À direita, o Lago do Prato, em novembro de 2019 Imagem: Arvo Tuvikene/Divulgação
Lago do Prato em novembro de 2023, durante seca histórica no Amazonas Imagem: Arvo Tuvikene

Realmente, uma redução drástica como essa no volume de águas pode surtir uma série de efeitos sobre a vida aquática, em especial dos peixes.

"De imediato, há um impacto na cadeia alimentar. Conforme o lago seca, boa parte de nutrientes e bactérias que estavam em seu leito acabam ficando em terra. Isso não volta quando as águas sobem", explica o ecólogo estoniado Prii Zingel, que ficou chocado com a diferença da paisagem do lago em comparação com sua última visita a ele, em 2019.

Priit Zingel, Helen Agasild e Arvo Tuvikene são um trio de estonianos especializados, justamente, em lagos. Eles estavam na expedição para estudar um tipo de cianobactéria que é a base da cadeia alimentar desses ecossistemas, servindo de alimento para zooplânctons que, por sua vez, servem de alimentos para peixes.

Cientista analisa peixe recém-capturado, em busca de parasitas. Imagem: Tiago da Mota e Silva

Além dos três, o brasileiro Waldir Heinrichs —ou apenas Dinho— também tinha como principal interesse a cadeia alimentar dos peixes e como ela tem sido afetada pela seca.

Ocorre que, com o encolhimento dos rios e lagos, como o que se vê em Anavilhanas, dá-se a concentração de uma maior quantidade de animais em um menor espaço disponível.

Em adaptação a essas novas condições, os peixes podem apresentar alterações em sua alimentação, além de competir mais entre eles pelos recursos disponíveis. Os cientistas avaliam o quanto essa mudança impacta suas vidas e se, de fato, as mudanças são adequadas e eficazes para o seu contexto.

Um efeito dessa competitividade por recursos é a maior ocorrência de parasitas entre os peixes. Especialista nesse assunto, a pesquisadora Jaqueline Custódio não teve dificuldades em encontrar isópodes nas brânquias de piranhas, por exemplo. Esses parasitas se assemelham a grandes piolhos —a fêmea chega a ter o tamanho de uma bolinha de gude— e se alimentam do sangue ou da mucosa de outros animais.

Ao que tudo indica, os parasitas encontram mais facilidade em se propagar em um espaço menor dividido entre muitos animais. Além disso, a seca deixa as águas mais quentes, o que torna os peixes mais suscetíveis a infecções desse tipo.

Pescador procura por peixes no que restou de um lago, em Anavilhanas Imagem: Tiago da Mota e Silva

As medições de Anavilhanas registraram temperaturas na água próxima da superfície entre 30ºC e 32ºC, suficientemente aquecida para exigir mais do metabolismo dos animais e de seu sistema imunológico.

O Lago Janauacá

Passados sete dias de estudos em Anavilhanas, o grupo de cientistas viajou pelo Rio Solimões para seu segundo destino, próximo ao Lago Janauacá, a cerca de 80 km de Manaus.

Diferentemente do arquipélago no Rio Negro, que é uma área de conservação ambiental, a região do Janauacá é lar para famílias ribeirinhas, que dependem dos rios para pesca, para o transporte e para o consumo de água.

Susana Braz-Mota e Thiago Nascimento visitavam o local pela segunda vez em 2023. Em outubro, eles tinham encontrado uma situação entristecedora: terra sequiosa e grande quantidade de peixes mortos, além de jacarés e tartarugas.

A esperança era que, passado mais de um mês da primeira visita, a situação tivesse melhorado no período da expedição. Porém, mesmo com um retorno tímido das chuvas na região, não houve aparente melhora —as águas continuaram secando, ao ponto de deixar algumas casas flutuantes apenas sobre o barro.

A grama brota em chão craquelado pela seca Imagem: Tiago da Mota e Silva

No momento da expedição, as águas voltavam a subir, mas ainda com 40 cm de profundidade em alguns pontos. Por esse motivo, os dois cientistas sequer conseguiram entrar na parte mais larga do lago, onde estiveram em 10 de outubro. Motivo: o motor de popa não consegue circular em águas tão rasas.

Os pescadores utilizam alguns dos estreitos canais que restam para sua locomoção e para a pesca. Pelas suas margens, ainda é possível observar peixes mortos —e o cheiro pútrido no ar não engana. "Provavelmente eles morreram com a temperatura", explica Susana. "Na medida em que tentavam migrar, ficaram presos nos trechos mais rasos, onde a água esquenta muito mais com o sol."

Peixes mortos foram encontrados nos canais, em Janauacá Imagem: Tiago da Mota e Silva

Tudo indica que a temperatura das águas é o principal fator que leva à mortalidade de peixes durante a seca. Afinal, esses animais são ectotérmicos; isto é, não regulam a própria temperatura via mecanismos internos, como pássaros e mamíferos fazem. Além disso, águas aquecidas têm menos oxigênio diluído nelas, dificultando a respiração dos peixes.

Susana Braz-Mota estuda, justamente, essa resistência dos peixes à temperatura, associando-a também à menor disponibilidade de oxigênio diluído na água. Para elaborar seu estudo, a cientista expôs diferentes espécies ao aumento de temperatura e à menor concentração de oxigênio, em um aquário. Com isso, consegue delimitar quais são os limites de cada espécie e como elas respondem a esses desafios.

"A ideia é fazer esse experimento com o máximo de espécies e depois desenhar uma correlação entre esses dois fatores", explana Susana. "Esse levantamento nos dá pistas de quais são as espécies com mais chances de sobreviver às mudanças climáticas, com secas semelhantes a essas se tornando mais frequentes."

Garrafa em trecho seco de um lago Imagem: Divulgação/Inpa

Além dela, outros dois pesquisadores da expedição, Jefferson Silva e Jhonatan Mota, estão preocupados com o tema da respiração dos peixes. A oscilação de temperaturas exige mais dos processos que mantêm esses animais em equilíbrio com seu ambiente, forçando-os a adaptarem-se para sobreviver.

Uma dessas estratégias de adaptação é diminuir a intensidade do próprio metabolismo, de tal forma que os peixes consomem menos oxigênio e gastam menos energia para manterem-se vivos. Todavia, os estudos apontam que essa solução tem um custo alto ao animal e não necessariamente garante sua sobrevivência por um longo período de tempo.

Jefferson conta como esse tipo de adaptação também pode levar os peixes a se alimentarem menos do que o necessário. "Para algumas espécies, nessas condições, ou se come ou se respira", explica.

Quero entender se essa seca extrema é letal para eles e se eles sobreviveriam no caso de uma seca ainda pior. Afinal, os peixes escolhem entre respirar e morrer de fome ou comer e morrer asfixiados? Jefferson Silva

Situado entre os municípios de Careiro e Manaquiri, Janauacá é um lago que se estende por 7 km quadrados, farto em peixes muito consumidos na culinária amazonense, como o curimatã, o jaraqui e o tucunaré. Em 10 de outubro, a medição na água mostrava temperaturas na casa dos 38ºC, quando a média para o Rio Solimões é de 22ºC. Nessa segunda visita, as temperaturas se mantinham acima dos 30ºC.

Morando à beira do rio

Casa flutuante em área do lago Janauacá que secou. Durante a visita da expedição, o canal de água estava apenas com cerca de 40 cm de profundidade Imagem: Tiago da Mota e Silva

Segundo dados do IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas), há farta documentação sobre como o ciclo das águas pelo planeta vem sendo alterado devido ao aquecimento global.

Atualmente, metade das 8 bilhões de pessoas do mundo sofre por alguma forma de escassez de água relacionada às mudanças no clima. Esse número agora também engloba as cerca de 15 mil pessoas que moram em comunidades ribeirinhas no Amazonas.

José Carlos, 53, e sua esposa, Cecília, 57, vivem em sua casa flutuante na Vila do Janauacá há mais de 30 anos. Durante a estadia dos cientistas por ali, Zé Carlos alugou seu "quintal", no flutuante, para servir de base de operações para os pesquisadores.

Quando questionada sobre a seca, Cecília rapidamente saca seu celular para mostrar um vídeo: há poucas semanas, pela manhã, os pescadores da região foram surpreendidos pelas centenas de peixes mortos encontrados no lago. Esse é um exemplo de como a principal fonte de renda das famílias da vila, a pesca, também foi secando junto com os rios e lagos.

Pescadores trabalham próximo a um deslizamento (ou terras caídas), às margens do Rio Solimões, no Amazonas Imagem: Tiago da Mota e Silva

A mudança de paisagem ao redor da vila é evidente. Às margens do Rio Solimões, deslizamentos de terra, às vezes da ordem de 10 metros, carregam barro e árvores para a água —fenômeno conhecido regionalmente como "terras caídas".

Na medida que o rio vaza, Zé Carlos precisa locomover seu flutuante, tentando acompanhar as águas. Onde outrora eles moravam, até onde o nível do rio alcançava, agora há apenas um pequeno lago e uma roça, em que a família planta feijão e verduras.

A escola dos sete netos de Zé teve de encerrar as aulas mais cedo em 2023, também devido à seca. Antes, era possível levar as crianças até lá de bote. Durante a estiagem, um caminho de 2 km de terra se abriu entre sua casa e a escola, sob sol forte. As crianças simplesmente não conseguem percorrê-lo.

Tem boi onde era lago e rio

Pequeno lago ficou isolado do Rio Solimões conforme o nível da água baixou. Peixes e até um jacaré permaneceram aprisionados ali Imagem: Tiago da Mota e Silva


Guilherme, de apenas 8 anos, um dos netos de Zé, conta que para ele a parte mais difícil de viver nesta seca é o "gosto ruim da água". Na vila, tudo se faz com a mesma água do rio --não há acesso a saneamento básico.

O encolhimento do rio acaba por concentrar também uma maior quantidade de sedimentos e de sujeira na água usada para tomar banho, escovar os dentes, cozinhar e matar a sede.

A Amazônia está mudando. Mas ela não é só uma paisagem, uma fotografia de um lugar distante. É um sistema vivo. Com ela, muda toda a vida que nela habita e dela depende, de todo sujeito humano e não-humano. "O sistema é extremamente resiliente e dinâmico", argumenta Dal, enquanto contempla o saldo dos últimos dias da expedição que organizou.

A gente vê lagos secando e, ainda assim, mesmo com tanta mortalidade, lá a biodiversidade aquática está representada. Mas é bom que a gente entenda que, por ser um sistema superdinâmico, ele não se manterá igual. Uma vez transformado, ele também não voltará a ser como foi. Ele se adapta a novos momentos Adalberto Val, biólogo

Guilherme e Uandel brincam às margens do Solimões, em área que deveria estar alagada Imagem: Tiago da Mota e Silva

Aos olhos do menino Guilherme, porém, tudo isso vira oportunidade para uma brincadeira. Ele aposta corrida com seu irmão mais velho, Uandel, de 11 anos, pelos barrancos de terras caídas. Vai buscar peixes, cujos nomes sabe de cor, em uma pescaria fácil no laguinho que ficou isolado.

Onde o rio secou, seu avô arrendou a terra para receber 22 cabeças de gado, fazendo com isso uma renda extra. Boi, bem ali, na beira do Solimões, no coração da Amazônia.

E Guilherme também brinca com o gado. O menino sabe quais bois são bravos e quais são amigáveis. Para essa criança, seu mundo já nasceu mudado.

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