Do lixo para as passarelas: guarda-chuvas descartados viram roupas de grife

"Onde vão parar os guarda-chuvas perdidos?" O poeta Mário Quintana, há décadas, se indagou sobre a questão em um de seus mais célebres poemas. Em São Paulo, desde 2020, parte desses objetos estão sendo transformados em jaquetas, bolsas, calças, casacos, shorts, bermudas, saias e mais uma infinidade de produtos.

A alquimia acontece por meio do upcycling: técnica que se baseia no reuso de matéria-prima morta com objetivo de usar o lixo de forma criativa.

Faz muito sentido que a prática conquiste espaço no mercado da moda, afinal, a indústria têxtil é uma importante geradora de resíduos —responsável por 2% a 8% das emissões globais de gás carbônico, além de poluir fontes de água na fase de tingimento. Os dados são de um estudo do Pnuma (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente).

Economia circular e consumo consciente

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Imagem: Divulgação

Alternativa de redução de impactos, o upcycling se baseia nos conceitos de economia circular e consumo consciente. É uma prática que visa transformar resíduos ou materiais descartados em produtos de maior valor.

"Os recursos são usados de maneira mais eficiente e sustentável ao longo de seu ciclo de vida", diz Jullia Tedesco, gerente de projetos de reciclagem da TerraCycle, empresa global de soluções de sustentabilidade.

  • A técnica promove o reaproveitamento criativo
  • Diminui a extração de matérias primas
  • Combate o desperdício
  • Reduz descarte de rejeitos que geram poluição

O upcycling não começou agora por aqui. A reutilização do náilon de guarda-chuvas descartados em novos produtos já é feita em São Paulo desde 2013 pela plataforma de moda sustentável Revoada.

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Durante a pandemia da covid-19, o grupo se aliou ao Trama Afetiva, coletivo focado em design social para inovação em resíduos têxteis. Juntos criaram uma linha de vestíveis sustentável e criativa.

"A designer Itiana Pazette, uma das criadoras da Revoada foi quem trouxe o seu conhecimento sobre essa matéria-prima para o nosso grupo, ao lado de Thais Losso, nossa diretora de moda", diz Jackson Araujo, diretor criativo da Trama Afetiva.

Do lixo para as passarelas

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Na última coleção lançada pelo grupo, em dezembro do ano passado, centenas de guarda-chuvas que deixaram de ir para aterros sanitários, onde levariam cerca de 30 anos para se decompor, se transformaram em tops franjados, tangas, saias godês, entre outras peças.

Nos itens em crochê, a coleção teve a participação das Empreendedoras da Quebrada, grupo de crocheteiras da região do Jaraguá, zona norte de São Paulo. Essas peças são elaboradas com fitas recortadas do náilon dos guarda-chuvas.

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Ao todo, foram usados 250 guarda-chuvas, dos quais 45 tiveram seus panos transformados em fitas para crochê, resultando em 1.764 metros de material Thais Losso, diretora de moda da Trama Afetiva

Os looks foram destaque nas passarelas do Eco Brasil Fashion Week, evento dedicado à moda sustentável, realizado na primeira semana de dezembro.

Decolonialidade, diversidade e inclusão

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Além de buscar ressignificar resíduos têxteis para a indústria da moda, a Trama Afetiva, desde que foi criada em 2016, vem procurando diversificar seu campo de atuação.

Outra iniciativa do coletivo é uma escola de educação à distância de design criativo baseada nas pesquisas do grupo sobre matérias-primas, sustentabilidade e criação colaborativa.

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O foco [da escola] é compartilhar conhecimento sobre decolonialidade, diversidade e inclusão.
Jackson Araujo, diretor criativo da Trama Afetiva

A escola foi inaugurada em agosto de 2023 com uma aula magna ministrada por Antônio Bisbo dos Santos, conhecido como Nêgo Bisbo, quilombola e escritor, que morreu no último dia 3.

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A operação com os guarda-chuvas, Araújo conta que começou a se estruturar em 2022. "Compramos de catadoras da cooperativa Avemare, recebemos lotes com cerca de 120 por mês". Ele afirma que os valores pagos variam bastante de acordo com a quantidade de material coletado, mas declarou já terem pago R$ 3 mil a uma cooperativa

Após a higienização, os náilons são separados por cores e estampas. Depois, as peças são cortadas e formatadas para gerar modelagens com resíduo zero. Em seguida, o material segue para as costureiras.

A cadeia produtiva da Trama, além do trabalho das catadoras, inclui parceria com cooperativas de costureiras. Segundo Araújo, 300 famílias são impactadas pelo trabalho. O preço das peças varia de R$ 80 a R$ 800.

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'Conscientização tem crescido'

Conceitualmente falando, upcycling no mercado da moda da moda significa dar um novo ciclo de vida para um produto, explica a estilista Ana Paula Sudano, uma das idealizadoras e diretoras do Eco Brasil Fashion Week.

Pode ser, por exemplo, a matéria-prima têxtil da roupa após uso ou a reciclagem química, onde se desfibra o material e o transforma em um outro tecido, fazendo uma nova peça.
Ana Paula Sudano

Ela conta que na edição deste ano do Eco Brasil Fashion Week estiveram presentes várias marcas que trabalham com diferentes conceitos e práticas de sustentabilidade, inclusive o upcycling.

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Segundo a diretora do Eco Brasil Fashion Week, esses conceitos têm causado impacto no mercado da moda. "A conscientização tem crescido em relação ao consumo excessivo e descarte de peças."

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Ana Paula argumenta que o setor tem incorporado diferentes práticas sustentáveis. Além do upcycling, ela cita o crescimento do número de brechós e o uso de fibras naturais, tingimentos naturais não tóxicos, tecidos mais inteligentes com nanopartículas tecnológicas, proteção solar e biodegradabilidade.

Criatividade e abordagem sustentável

O upcycling pode ser aplicado em diversas áreas, desde moda e design de interiores até arte e tecnologia, observa Jullia Tedesco, da TerraCycle;

O cerne é a criatividade e a abordagem sustentável, buscando maximizar o valor dos materiais existentes em vez de simplesmente descartá-los.
Jullia Tedesco

Tedesco diz que muitos resíduos gerados hoje em dia são classificados como não recicláveis. "Por isso, é preciso atuar com os dois grupos: recicláveis e não recicláveis."

Segundo ela, a TerraCycle cria e opera plataformas focadas em reinserção de materiais reciclados e embalagens e produtos reutilizáveis por meio da logística reversa.

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O objetivo é engajar as várias partes interessadas da cadeia, como os fabricantes, varejistas e consumidores finais em diversos programas, desde empresas até escolas e indivíduos, acrescenta Mariane Marcheti, também gerente de projetos de reciclagem da empresa.

"Temos obras de arte feitas com lápis de cor pós consumo, ecobags feitas com embalagens que seriam descartadas, chaveiros feitos de cápsulas de café, entre outros."

Cada um com seu seu papel

Os desafios que o upcycling tem pela frente no Brasil não são poucos. Para avançarmos na reciclagem de produtos e embalagens difíceis de se reciclar é necessário agir em diversas frentes, ressalta Jullia Tedesco.

Ela cita a necessidade de investimento das empresas em soluções para os resíduos que fabricam e uma atenção maior dos consumidores a esse aspecto na hora da escolha do produto. "Todos os elos da cadeia devem desempenhar seu papel."

Mariane Marcheti salienta que o custo do transporte é outro desafio a ser superado. "O material por não ter valor agregado faz com que o frete seja caro, ou seja, o acúmulo de resíduos em locais estratégicos pode ajudar a reduzir um pouco o investimento nesta frente."

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Ela também pontua que, para o processamento, é necessário um incentivo do poder público ao empreendedor que opte por enveredar pelo caminho da reciclagem, de preferência em regiões diversas do país. "Caso contrário continuaremos com uma concentração da indústria de reciclagem nas regiões sul e sudeste."

No caso da moda, Ana Paula Sudano, que atua como estilista há 25 anos, é otimista.

A indústria têxtil esteve por trás de todas as revoluções industriais, e acredito que não ficará de fora desse olhar da sustentabilidade, do ESG [sigla em inglês para práticas ambientais, sociais e de governança] e dos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU.
Ana Paula Sudano

Ela admite que a gente vive uma crise climática e afirma que o planeta precisa desse olhar mais afetivo, mais atento aos detalhes. "A produção industrial humana de baixo carbono hoje é mais do que uma tendência uma necessidade real."

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