'Aprendi a controlar minha dor': detentas fazem curso de meditação em SP
Caroline Apple
Colaboração para Ecoa
31/01/2024 04h06
Pessoas amigas, parentes e advogadas não escondiam a ansiedade e a emoção enquanto aguardavam a chegada das 19 detentas da Penitenciária Feminina de Sant'Ana, na capital paulista, que participaram do curso de meditação Vipassana.
No curso, elas tiveram a oportunidade de vivenciar, durante dez dias, uma experiência inusitada de autoconhecimento por meio do silêncio absoluto, de longos períodos de meditação e de uma alimentação depurativa vegana dentro do presídio.
Do lado de fora do salão, preparado para a recepção das meditadoras de calças beges, as instruções eram carinhosas e educadas, mas claras e objetivas: beijos e abraços somente após a solenidade. Mas não foi fácil diante das visitas importantes que as detentas tiveram a oportunidade de receber por conta da ocasião inédita no complexo.
As reeducandas (como as detentas são chamadas pela administração do presídio) foram convidadas para a atividade, levando em consideração fatores internos de avaliação. As mulheres que aceitaram a proposta foram levadas para uma ala reformada com dinheiro de doação para receber o projeto.
Ecoa esteve na penitenciária no dia seguinte ao término do curso para participar da cerimônia de encerramento e entrega de certificados (que acontece somente nos cursos que acontecem dentro dos presídios como forma de incentivo).
'Diamantes brutos'
Macarena Infante foi a responsável por ministrar o curso na penitenciária feminina juntamente com outras servidoras (como são chamadas as pessoas voluntárias no Vipassana). Para a meditadora, as detentas são "diamantes brutos".
Algum dia elas vão brilhar. Essas mulheres passaram por muito sofrimento. Elas têm consciência dos seus erros, mas não sabem como mudar.
Macarena Infante, meditadora
"O curso serve como essa ferramenta de mudança de comportamento, hábitos e formas de pensar negativas. Com o Vipassana elas conseguiram encontrar um ponto de paz dentro delas. É maravilhoso para mim testemunhar isso", continua Macarena.
Entre as mais novas meditadoras estava Maria*, de 29 anos, presa há sete anos. Ela tinha questões profundas a respeito da sua identidade de gênero.
Por ser lésbica, a jovem acreditava que sua apresentação social precisava seguir a sua orientação sexual e cogitava fazer alterações físicas para "acompanhar" sua personalidade, tida como masculinizada, mas foi durante a experiência que ela percebeu que era muito mais do que a sua aparência.
"Comecei o Vipassana usando o nome social, mas percebi que posso ser a Maria, porque, no meu caso, eu não estava mudando minha identidade de gênero por mim, mas sim por causa do como me viam. E isso não importa. O ser humano só olha por fora, só vê o visual, e achei que deveria atender a essa expectativa por ser lésbica e por não me encaixar no que esperam de uma mulher na sociedade", conta Maria
Agora, eu me aceito como sou e quero seguir minha vida assim, sendo eu mesma. Fazendo o bem é o que importa. Foram dez dias vivendo uma vida paralela. Nem parecia que estávamos dentro de uma cadeia. Fomos tratadas com muita educação, respeito e cuidado. Aprendi a controlar minha dor interna e isso facilita a vida, vai me ajudar a não descontar isso em outras pessoas.
Maria*, reeducanda
'Estou regenerada, mãe!'
Esta foi a primeira frase que uma das detentas disse ao se encontrar com a mãe durante o café da manhã oferecido para as reeducandas e para os seus familiares no fechamento do curso. E o clima no encontro foi de muita esperança por uma vida melhor dentro e fora do cárcere.
Matilde*, de 45 anos, acessou dores profundas que ela acredita terem sido as responsáveis por boa parte das más escolhas que tomou na vida, entre elas a que a levou para a cadeia.
Eu me conheci muito de dentro para fora, me vi como uma mulher egocêntrica e que não pensava no próximo. Consegui acessar uma compaixão que me fez lembrar do tamanho do amor que tenho dentro de mim e que quero levar comigo para onde eu for.
Matilde*, reeducanda
"Estou aqui há três anos e ainda não sei exatamente quando poderei sair, mas saio diferente e pronta para amar ao próximo", prossegue Matilde.
Quem apostou as fichas nesse processo de ressocialização foi o vice-diretor da penitenciária, Jorge Augusto Santana. Ele, que trabalha no sistema de reclusão há 34 anos, é sacerdote de Umbanda e tem práticas espirituais e de autoconhecimento que contemplam a meditação
A sua abertura para o projeto foi apoiada em suas experiências pessoais positivas, mas Santana sabia que precisaria convencer seu corpo funcional. "Fizemos diversas reuniões com os funcionários, que tiveram a oportunidade de fazer uma meditação durante a apresentação da proposta. Conseguimos mostrar a importância dessa ferramenta no processo de ressocialização."
Santana diz que a falta de educação e de disciplina afeta toda essa questão da inserção à criminalidade. "A partir do momento que eu trago essa educação de várias formas é mais uma janela aberta, um novo olhar para que a gente possa dar outra proposta de vida para elas. Nunca vou perder a esperança", diz.
Existem pessoas que não vão mudar, mas se eu conseguir ganhar uma alma, não para mim, para Deus, para o universo, para que ela não faça mal a ninguém lá fora nem mal a ela mesma, eu estou feliz.
Jorge Santana, vice-diretor da penitenciária
A iniciativa de levar o Vipassana para dentro da penitenciária feminina partiu de um aluno, o empreendedor Douglas Litholdo da Rosa Silva, que decidiu usar sua influência para realizar a experiência pela primeira vez no Brasil em uma penitenciária para mulheres.
"O Vipassana é um movimento maravilhoso, que leva paz para o mundo. Meu trabalho foi o de mensageiro para levar essa proposta e tocar as pessoas de alguma forma. Tínhamos alguns obstáculos, um deles era local, lembrando que nós estamos numa penitenciária e temos que seguir todos os protocolos de segurança", conta ele.
Silva diz que tinha um espaço, que era um hospital antigo, que decidiram reformar e, para isso, pediram doações aos meditadores. "Foram investidos mais de R$ 70 mil, arrecadados em doações. Mas isso só foi possível porque todo o corpo funcional compartilhou do mesmo espírito: ajudar a fazer do mundo um lugar melhor", conta o empresário.
Vipassana em presídios
O Vipassana é uma das técnicas de meditativas mais antigas da Índia, que ganhou o mundo a partir do professor indiano Satya Narayan Goenka. Entre os projetos oferecidos por organizações adeptas da meditação e dos ensinamentos de Goenka está a ministração do curso em penitenciárias há mais de 25 anos em países como Brasil, Canadá, Índia, Israel, Mongólia, Mianmar, Nova Zelândia, Taiwan, Tailândia, Reino Unido e Estados Unidos.
A organização traz em seu site uma série de artigos científicos, pesquisas e estudos que apontam que a técnica de Vipassana colabora com a redução da taxa de reincidência em até 57% nas populações carcerárias que a praticam regularmente.
Um estudo publicado em 2012 pela Journal of Offender Rehabilitation afirmou que "em comparação com o grupo de controle, os participantes de Vipassana têm significativamente menos problemas comportamentais e maior bem-estar fisiológico" e que "detentos que concluíram um curso de Vipassana também eram menos raivosos e mais capazes de controlar a exteriorização de sentimentos de raiva", além de haver "uma redução de 20% em ações disciplinares entre os participantes".
No Brasil, o primeiro curso de Vipassana em um presídio foi realizado em 2018 para detentos do Complexo Penitenciário Público-Privado (CPPP), em Ribeirão das Neves (MG). E em 2023 a técnica chegou pela primeira vez a um presídio de mulheres.