Projeto coloca torres na Amazônia para avaliar efeitos do aumento de CO2
David M. Lapola*
Do The Conversation
21/03/2024 18h38
No final dos anos 1990 e início dos anos 2000, alguns estudos de modelagem clima-vegetação lançaram a possibilidade de a Floresta Amazônica colapsar em razão de mudanças climáticas extremas. Isso foi primeiro chamado de "Amazon forest dieback" (algo como "morte súbita da Floresta Amazônica"), depois alterado para "savanização da Amazônia" e, mais recentemente, rebatizado de "Amazon tipping point" ("ponto de não retorno da Amazônia").
A possibilidade de se perder vastas extensões da Floresta Amazônica devido às mudanças climáticas globais é algo que, desde aquela época, deveria deixar os governos dos países Amazônicos de cabelo em pé. Mas não deixou, muito em razão de incertezas científicas sobre estas previsões.
Uma das maiores dessas incertezas em relação ao ponto de não retorno Amazônico diz respeito ao chamado "efeito de fertilização por CO2" (Lapola et al. 2009). Sendo um insumo básico da fotossíntese, é de se esperar que o aumento do dióxido de carbono (CO2) atmosférico - que provoca o aquecimento global - também estimule as taxas de fotossíntese e a produtividade de modo geral das plantas. Isso já foi comprovado por vários estudos em laboratório e de campo em pequena escala.
Mas a questão é menos óbvia quando se analisa esse efeito de fertilização por CO2 na escala macro do ecossistema Amazônico. Por exemplo, a falta de nutrientes no solo (no caso da Amazônia, principalmente o fósforo) pode limitar qualquer resposta da vegetação ao aumento do CO2 atmosférico. Então, as projeções de modelos acerca do futuro da Amazônia frente às mudanças climáticas esbarram em como o efeito de fertilização por CO2, se existente, poderá refrear ou contrabalançar os impactos deletérios do aumento de temperatura e da redução de chuvas na região.
Fertilização por CO2 em questão
Dados observacionais oriundos de parcelas florestais que são monitoradas desde o final dos anos 1970 mostram que as florestas intocadas da Amazônia (sem considerar áreas desmatadas) vêm atuando historicamente como um sumidouro de carbono, isto é, retirando carbono da atmosfera e o armazenando na sua biomassa. A explicação mais aceita para isso é que o aumento de CO2 atmosférico vem estimulando este crescimento no estoque de biomassa da Floresta Amazônica.
Essa capacidade da floresta de atuar como sumidouro de carbono, no entanto, já ficou 30% mais fraca desde os anos 1990, e acredita-se que isso vem acontecendo devido ao aumento das temperaturas na região. E uma hipótese que não pode ser descartada é que estaria ocorrendo uma suposta saturação do efeito de fertilização por CO2, seja pelos extremos climáticos, seja pela falta de fósforo no solo (o fósforo é um nutriente importantíssimo para a construção do material genético, moléculas energéticas e membrana celular. Sem ele, as plantas têm dificuldade para crescer).
Os modelos computacionais que primeiro apontaram a hipótese de um ponto de não retorno Amazônico agora pouco podem fazer sem evidências diretas de campo. Diante disso, atualmente a única e melhor maneira de se testar de forma controlada a existência, magnitude e duração do efeito de fertilização por CO2 na escala de ecossistema é por meio de uma tecnologia conhecida como FACE (Free-Air CO2 Enrichment, ou "enriquecimento por CO2 ao ar livre").
O que é o FACE
O FACE é um sistema de torres instaladas em uma configuração circular, ligadas a um tanque de CO2 puro, que liberam, dentro do seu círculo, um ar enriquecido em CO2. Um complexo sistema de sensores e válvulas permite um controle fino para que a atmosfera dentro do círculo de torres tenha a concentração pretendida de CO2.
O experimento
O uso dessa tecnologia FACE em uma parcela de floresta na Amazônia é o pivô central do AmazonFACE, programa de pesquisa do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) coordenado pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e financiado em partes iguais pelo MCTI e pelo governo britânico.
Localizado em uma área de floresta nativa gerenciada pelo INPA, o AmazonFACE vai contar com um total de seis círculos FACE, sendo três deles do grupo "tratamento" - com atmosfera enriquecida com uma concentração 50% maior de CO2 na comparação com a média da atmosfera da Terra - e três controles - apenas com a aspersão da atmosfera local.
As torres do sistema no AmazonFACE têm 35 metros de altura, ultrapassando a copa das árvores, e os círculos 30 metros de diâmetro, abrigando em torno de 50 árvores maduras cada um. Um conjunto de quatro guindastes de 50 metros de altura ajudam tanto na construção quanto a permitir que os pesquisadores realizem medições no topo das árvores durante o experimento. É a primeira vez que tal experiência será realizada na Floresta Amazônica, e a primeira vez em uma floresta tropical, o que tem uma importância chave para reduzir incertezas quando ao ciclo global de carbono.
Entre julho e agosto de 2024 serão feitos os primeiros testes nos dois primeiros círculos do AmazonFACE, cuja construção está em fase final de conclusão. Outros quatro círculos devem ser concluídos até o final deste ano, quando se dará início ao experimento completo.
Uma vez iniciado o experimento, devemos medir simplesmente tudo o que for possível nessas parcelas de floresta, tendo em conta que o efeito do CO2 elevado pode se manifestar em qualquer parte delas. Sendo assim, vamos medir, por exemplo, a fotossíntese com um instrumento apropriado para isso e, com o auxílio do guindaste, nas folhas mais altas no topo das árvores. Mediremos também o crescimento das raízes finas, responsáveis pela captação de água e nutrientes do solo, com o uso de câmeras especializadas colocadas abaixo do solo.
O AmazonFACE deve continuar por pelo menos 10 anos para permitir capturar o efeito do aumento de CO2 atmosférico sobre processos ecológicos que têm uma dinâmica lenta, como o crescimento do tronco das árvores. Sendo assim, alguns resultados, como o armazenamento de carbono nos troncos, só estarão prontos para serem divulgados após vários anos de observações. Outros resultados, como o efeito sobre as taxas de fotossíntese, no entanto, já poderão ser divulgados em questão de semanas após o início do experimento.
O AmazonFACE conta ainda com um experimento paralelo de menor escala, que faz uso de estruturas conhecidas como "câmaras de topo aberto", onde se pode submeter árvores relativamente pequenas, de até 3 metros de altura, do sub-bosque florestal, a concentrações elevadas de CO2. Os primeiros resultados desse experimento, que funciona desde 2018, estão sendo publicados agora. Mas embora inovador e cientificamente importante, este pequeno experimento com câmaras de topo aberto ainda fica longe de responder às perguntas no nível de ecossistema, como faremos com a tecnologia FACE.
Resultados para a ciência e a sociedade
Um dos resultados esperados do AmazonFACE é que os dados oriundos do experimento de campo possam melhorar a formulação de modelos computacionais da relação entre vegetação e clima. Isso permitirá projeções mais confiáveis acerca do futuro da Amazônia frente às mudanças climáticas, e diminuirá as incertezas quanto à possibilidade de um ponto de não retorno Amazônico. Essa interação entre o experimento de campo e atividades de modelagem é algo que já vem sendo conduzido desde o início do programa de modo a ensejar uma boa troca de informações entre os cientistas de campo e os modeladores.
Por fim, o AmazonFACE conta também com uma área de pesquisa "socioambiental", que investiga como os impactos do aumento de CO2 e das mudanças climáticas na floresta vão transbordar para diferentes setores socioeconômicos da região. Essa pesquisa socioambiental se ampara sobretudo no conceito de serviços ecossistêmicos para fazer uma ponte entre as possíveis alterações na floresta (e nos serviços que ela provê) e a sociedade.
Mesmo que se descubra que o efeito de fertilização por CO2 é fraco, inexistente ou passageiro, é claro que o experimento do AmazonFACE em si não nos dará condições, sozinho, de mitigar ou eliminar a possibilidade de a Floresta Amazônica ser profundamente alterada pelas mudanças climáticas, como o preconizado pela hipótese do ponto de não retorno Amazônico. Mas deter o conhecimento que será gerado pelo programa pode ajudar sobremaneira as populações da região a se prepararem ou se adaptarem para esse futuro vindouro.
Muito além do impacto tecnológico e financeiro que o programa trará para a região, o AmazonFACE certamente terá ainda uma forte influência na formação da próxima geração de cientistas atuando na Amazônia, estimulando a proposição e implantação de projetos ambiciosos e inovadores tão necessários para a região.
*David M. Lapola é ecólogo e pesquisador do CEPAGRI, da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas)
Este artigo foi originalmente publicado pelo The Conversation