Falta de transparência na cadeia é maior entrave para moda ser sustentável
Água contaminada, pesticidas, emissão de gases tóxicos, quilos de lixo. A roupa que você está usando agora provavelmente deixou esses e outros rastros ambientais no caminho das plantações ou fábricas até a arara da loja.
Altamente poluente, a indústria têxtil e da moda tem mirado uma produção mais sustentável como o principal objetivo desta e das próximas décadas, com compromissos para reduzir a emissão de gases do efeito estufa e tornar outros processos ambientalmente adequados.
Passarelas do país e do mundo ostentam inovações que mostram o potencial da tecnologia para atingir esses objetivos. No começo do mês, a Paris Fashion Week desfilou lantejoulas de alumínio reciclado, couro vegano fabricado a partir de resíduos de maçã e bolsa feita de 99% de ar. Em território brasileiro, a São Paulo Fashion Week também apostou na sustentabilidade, com peças feitas de fibra de bananeira, sobras da indústria náutica e cano PVC.
"O maior desafio é a circularidade em vários aspectos. Na indústria automobilística, por exemplo, o produtor é responsável pelo descarte do produto. Se pensarmos que somos responsáveis pelo lixo que produzimos, vamos começar a pensar em produtos com mais longevidade e qualidade. Mas junto a isso, há também o desafio de ensinar o cliente que nem tudo está na quantidade. E é uma chave difícil de virar", explica Sueli Pereira, gerente de comunicação e moda da Santista Jeanswear.
Embora o potencial seja grande, os desafios são gigantes e percorrem quase todas as etapas de uma cadeia que ainda não é 100% transparente.
Problemas em cadeia
Os impactos ambientais começam na produção do material que vai virar tecido. Na plantação de algodão, por exemplo, principal matéria-prima têxtil natural produzida no país, há uso de pesticidas e produtos químicos que danificam o solo.
O processo também é marcado por alterações genéticas nas sementes para atender à grande demanda do mercado, destaca a professora e pesquisadora Liliane Araújo, da UFPI (Universidade Federal do Piauí).
Apesar de muito menos abundante do que o algodão, a produção do couro também é altamente poluente, de acordo com a pesquisadora, principalmente porque o processo de curtição gera uma água cheia de compostos tóxicos que é descartada no ambiente.
A fabricação das fibras sintéticas, como o poliéster, também tem potencial poluidor. A fibra, uma das mais populares da indústria, é produzida a partir do polietileno (derivado do petróleo) por meio de processos químicos.
Da produção, a matéria-prima segue para a tecelagem e fiação, onde é transformada em tecido. O tecido vai, então, para a etapa de beneficiamento, que envolve lavagem, alvejamento e coloração. Nesta etapa, a água é o principal recurso em risco, tanto pelo seu uso abundante quanto pela contaminação por materiais pesados.
Tratados e tingidos, os tecidos seguem para a confecção, etapa que concentra um dos principais problemas da cadeia: descarte de toneladas de material. Durante a confecção, o corte dos tecidos gera montanhas de retalhos que acabam, na maioria das vezes, queimados ou em aterros sanitários. De acordo com a estimativa mais recente da Abit (Associação Brasileira da Indústria Têxtil), apenas esta etapa gera, por ano, mais de 190 mil toneladas de resíduos.
O descarte volta a ser um problema no final da cadeia da roupa, já que o mercado da moda funciona de maneira predominantemente linear, com peças que são produzidas, usadas e descartadas.
Com o crescimento da fast fashion (moda rápida) a partir da década de 1990, esse problema tem se intensificado. O modelo de produção é baseado em coleções-cápsulas, marcadas por poucas peças (cerca de 8 a 15), mas com maior quantidade de cápsulas em curto período de tempo. Dessa forma, a marca fast fashion gera novidades durante todo o ano - e, consequentemente, mais descarte, destaca Araújo.
Estimativas vagas
Muitos dos números usados para falar sobre os impactos ambientais da indústria têxtil são estimativas publicadas por consultorias, institutos de pesquisa e organizações não governamentais. Uma das mais respeitadas no mercado da moda é a ONG britânica Ellen MacArthur Foundation, com dados que embasam desde pesquisas acadêmicas a relatórios do Banco Mundial. Publicações da ONU (Organização das Nações Unidas) também são referência no setor.
Mas muitos dos números divulgados por essas diferentes agências apresentam uma variação grande nas projeções. Essa discrepância chamou a atenção da cientista ambiental norte-americana Linda Greer, que argumenta que a qualidade dos dados posta à prova pode ser prejudicial para as discussões de sustentabilidade.
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Quero receberO problema se deve sobretudo à dificuldade de se medir precisamente o impacto, por se tratar de uma cadeia de produção multifacetada, complexa e com pouca transparência em seus processos, segundo definiu a pesquisadora em artigo publicado na revista Harvard Business Review.
Em relatório publicado pela ONU com os signatários do acordo por uma moda mais sustentável, empresas do setor relatam que têm dados limitados sobre os rastros ambientais de sua produção. Cerca de 40% disse que utiliza o Índice Higg, ferramenta que mede a performance ambiental na cadeia de suprimentos.
Mesmo com modelos de medição consolidados no mercado, a falta de domínio de todas as pontas da cadeia dificulta a medição exata do impacto gerado. Por exemplo, empresas que confeccionam a peça podem não ter informações precisas das práticas de seus fornecedores.
No Brasil, pesquisadores se baseiam em dados fornecidos por Abit, IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), Ministério da Economia, Instituto Inteligência de Mercado e Sebrae, entre outros órgãos públicos e institutos de pesquisa específicos, explica a professora da UFPI.
Mas dados nacionais precisos sobre o material descartado também são um desafio no país. Um exemplo é a medição de resíduos sólidos. Em sua dissertação de mestrado sobre o tema pela USP (Universidade São Paulo), a pesquisadora Mariana Correia do Amaral ressaltou que o lixo gerado pela indústria têxtil costuma ser classificado na categoria "outros" em relatórios e pesquisas sobre lixo urbano, o que dificulta ainda mais a precisão sobre os impactos ambientais.
Ainda assim, é possível ser sustentável
Apesar dos problemas, o mercado da moda no mundo e no Brasil evoluiu muito nas últimas décadas em diversos aspectos. A melhora passa pela modernização de processos industriais, que passaram a ser mais produtivos e sustentáveis, mas também é fruto da maior produção de matérias-primas orgânicas nas lavouras, regulações capitaneadas por órgãos de fiscalização e conscientização das marcas, que adaptaram a produção para responderem a essas demandas, contextualiza a coordenadora de graduação do curso de Têxtil e Moda da USP, Júlia Baruque Ramos.
A transformação também passa por grupos de pesquisa em universidades, que trabalham em parceria com o poder público e o setor privado. Um exemplo é o Sutexmoda, da USP, que, além de desenvolver pesquisas, promove ações de impacto socioambiental, como o fornecimento de sobras de resíduos têxteis para pequenos produtores.
Abaixo, listamos algumas tecnologias e iniciativas usadas no mercado brasileiro:
Orgânicos, reciclagem e reflorestamento
O uso de fibra orgânica, que não utiliza pesticidas e fertilizantes, é a principal arma da produção nessa luta. No país, a produção de algodão orgânico é feita por agricultores familiares e está concentrada na região semiárida (Paraíba, Piauí, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Ceará e Minas Gerais), de acordo com a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária).
Algumas confecções priorizam esse material. A estilista Flávia Aranha, dona de uma marca com seu nome, é uma das mais conhecidas da moda brasileira a empregar essa matéria-prima.
A reciclagem dos retalhos para produção de novas fibras é um dos modos de tentar diminuir a geração de lixo na confecção, aponta Baruque. Segundo a professora, um exemplo no país é o grupo Malwee, de Santa Catarina, que utiliza algodão desfibrado (fio feito a partir da reciclagem de sobras) em suas peças.
A estilista Gih Caldas, do ateliê TA Studios no Rio de Janeiro, também busca materiais reciclados e orgânicos. Em seu desfile na última edição da São Paulo Fashion Week, ela levou peças feitas com viscose de reflorestamento, fibra de milho e garrafas recicladas.
Os experimentos para a produção de material biodegradável a partir de matérias-primas orgânicas têm crescido. Segundo Caldas, há muitas iniciativas pequenas espalhadas pelo país que fazem pesquisa e produzem materiais inovadores, e seu maior trabalho é garimpar essas iniciativas e firmar parcerias para a confecção.
Tratamento da água e fontes renováveis
A Santista Jeanswaer, produtora brasileira de denim, tem um grande projeto voltado à gestão da água. Primeiro, ela utiliza o CO2 gerado na produção para neutralizar o pH da água, substituindo o ácido sulfúrico. Assim, evita que o gás carbônico seja lançado na atmosfera.
Outro projeto é o Aquasave, que consiste na economia de água durante a lavagem e no uso da biomassa gerada pela lavagem como combustível. E, por fim, ela promove o tratamento de efluentes por meio da remoção de mais de 90% da carga orgânica da água antes de devolvê-la ao rio Piracicaba, no interior de São Paulo.
Outras alternativas passam pelo uso de corantes naturais no tingimento (na produção do denim, essa opção permite o abandono do uso da tóxica anilina) e na busca por fontes alternativas de energia. De acordo com Baruque, algumas confecções no sul do país já substituíram o fornecimento de energia elétrica por placas solares.
Desafios
Apesar de o escopo de ações no cardápio da sustentabilidade ser grande e variado, muitas dessas opções ainda são incorporadas em pequena escala, explica a professora da UFPI. E, claro, não passam pelo fast fashion, cujo modelo produção em larga escala acontece em países sem fiscalização ambiental ou trabalhista.
Além disso, as dificuldades para que empresas e marcas as empreguem são diversas. Segundo um relatório da ONU com base nas respostas dos signatários da iniciativa de zerar as emissões de carbono até 2050 (inclui empresas como Adidas, Burberry, Chanel e Decathlon), as principais barreiras são: falta de propriedade direta dos ativos, compromisso ou capacidade dos fornecedores e viabilidade tecnológica.
Para além dos benefícios ambientais, vender sustentabilidade também virou um ativo de valor. De acordo com a gerente de moda da Santista Jeanswear, muitos lojistas, ao comprarem seus produtos, também têm pedido assessoria de marketing para trabalhar melhor esses conceitos de forma a aproveitar o capital verde associado.
Isso é um reflexo da maior conscientização de parte do público consumidor, que aceita pagar um pouco mais se o produto for de qualidade e sustentável, explica.
Por fim, uma moda mais preocupada com processos sustentáveis também tem impacto na geração e na qualidade de empregos. Primeiro porque o conceito de sustentabilidade na cadeia também envolve a esfera social, argumenta Baruque, com trabalhos registrados e formais na cadeia produtiva. E também porque as inovações abrem caminhos para a entrada de pequenos agentes em pesquisa, confecção e comércio.
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