Barragem explodida, terra minada: guerra na Ucrânia faz vítimas silenciosas
Eduardo Carvalho e Flávia Mantovani
Colaboração para Ecoa em Kiev (Ucrânia) e em São Paulo
23/04/2024 04h05
Golfinhos mortos começaram a aparecer na costa dos países banhados pelo Mar Negro ao longo do ano de 2022, após a invasão russa à Ucrânia.
O fenômeno não era inédito, mas chamou a atenção de cientistas devido à frequência muito maior do que o normal e pelo fato de os cadáveres não estarem perfurados por anzóis e arpões de pesca, como de praxe. Investigações internacionais sobre as razões exatas ainda estão em andamento, mas especialistas já listaram algumas hipóteses.
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Os animais podem ter sido contaminados por metais pesados vindos de represas bombardeadas, sofrido o impacto acústico de sonares de navios e submarinos militares ou atingidos por mísseis que explodiram na água —ou por tudo isso.
Golfinhos, assim como outros animais marítimos e terrestres, fazem parte de um grupo de vítimas menos conhecidas da guerra da Ucrânia. O conflito, que mergulhou o país em uma catástrofe humanitária (ainda é incerto o número de vidas perdidas no confronto) há mais de dois anos, tem também consequências ambientais devastadoras.
"A guerra tem um impacto muito grande sobre o meio ambiente ucraniano, principalmente no sul do país e no litoral do Mar de Azov, onde há muitas áreas cultivadas, regiões de floresta e parques nacionais que foram destruídos completamente", afirmou Igor Tumasov, ex-cônsul da Ucrânia no Brasil e atual responsável pela região das Américas no Ministério das Relações Exteriores da Ucrânia.
Esse aspecto, geralmente negligenciado, foi trazido à tona por um relatório apresentado em fevereiro deste ano por uma equipe multinacional de autoridades ligadas à causa ambiental —o Grupo de Trabalho de Alto Nível sobre as Consequências Ambientais da Guerra, que possui, entre os membros, a bióloga e ex-ministra do Meio Ambiente do Brasil, Izabella Teixeira, e a ativista sueca Greta Thunberg.
Segundo o documento, a Rússia atacou, ocupou ou queimou grandes áreas de territórios ambientalmente sensíveis, com repercussão sobre todos os âmbitos da chamada tripla crise planetária —perda de biodiversidade, pressão sobre o clima e poluição crescente.
A lista de exemplos inclui a liberação de produtos químicos perigosos por indústrias destruídas, o impacto na qualidade do ar causado pela devastação de cidades e pelas queimadas de florestas, danos a áreas agrícolas e reservas naturais, destruição de infraestruturas hídricas e poluição da água e de ecossistemas marinhos.
O grupo afirma que o meio ambiente é uma vítima silenciosa do conflito e que tomar medidas para interromper a destruição e reparar os danos é urgente, e não "um luxo que deve ser adiado para o pós-guerra".
Desde 2022, o Programa da ONU para o Meio Ambiente (PNUMA) vem se manifestando sobre "o legado tóxico" da guerra na Ucrânia.
Em 2023, a diretora executiva do programa, Inger Andersen, clamou pelo fim do que chamou de "destruição sem sentido" e lembrou que o impacto ecológico é também um impacto sobre o ser humano.
O ambiente tem a ver com pessoas: tem a ver com meios de subsistência, saúde pública, ar e água limpos e sistemas alimentares básicos." Inger Andersen, diretora executiva da ONU
Quase 50 bilhões de euros de prejuízo ambiental
Autoridades e ambientalistas ucranianos tentam documentar o impacto ecológico do conflito, apesar da dificuldade de acesso a zonas de guerra. Em alguns casos, recorrem a imagens de satélite e a sistemas de deteção remota.
Um levantamento divulgado em fevereiro pelo Ministério da Proteção Ambiental e Recursos Naturais contabilizou 3.612 casos de danos ambientais, com perdas estimadas em 56,7 bilhões de euros.
"As pessoas ao redor do planeta não sabem o que está acontecendo. Estamos sem recursos e com muitos trabalhadores voluntários", afirmou o ministro do Meio Ambiente ucraniano, Ruslan Strilets, sobre a dificuldade de registrar os danos.
Kiev estima que a ofensiva russa tenha emitido ao menos 150 milhões de toneladas de gases de efeito estufa, como dióxido de carbono e metano
Nas áreas ocupadas pelos russos - equivalentes a 18% do território ucraniano —, o governo diz que 2,4 milhões de hectares de florestas foram afetados.
"Um terço dos planos ambientais do país foi interrompido devido à guerra", disse Vasylyna Belyo, chefe do departamento de clima da Ecodiya, uma das principais instituições ambientais da sociedade civil ucraniana.
A ONG desenvolveu um mapa virtual colaborativo que contabiliza evidências de ao menos 1.500 crimes ambientais em razão da invasão russa.
A equipe, reduzida após quatro integrantes terem sido enviados ao front, defende uma "reconstrução verde", baseada em melhores práticas agrícolas, restauração florestal e soluções baseadas na natureza.
O colapso da represa
Descrita como "uma bomba ambiental de destruição em massa" pelo governo ucraniano, a ruptura da barragem de Kakhovka, em junho de 2023, é considerada a maior catástrofe ambiental desta guerra.
Imagens aéreas captaram a fúria das águas após a explosão da instalação, que tinha o maior reservatório da Europa em volume (18 km3) e o segundo maior em área de superfície (2.092 km2) e fornecia aproximadamente 5% da energia hidroelétrica do país.
Além de produzir energia, a usina abastecia a irrigação das terras agrícolas e os reservatórios de resfriamento da central nuclear da cidade ucraniana de Zaporizhzhya.
As inundações afetaram áreas controladas pelos russos e pelos ucranianos.
Segundo o Observatório de Conflitos e Meio Ambiente (Ceobs), 620 km2 de terra foram inundados nos três primeiros dias após o colapso, carregando produtos químicos e resíduos e destruindo zonas agrícolas, residenciais e industriais, além de seis áreas de importância ecológica.
As cheias também descarregaram metais pesados, pesticidades e detritos no Mar Negro, que levaram à proliferação de algas tóxicas e afetaram os habitats do fundo do mar.
O colapso da represa de Kakhovka é a principal bandeira da Ucrânia para defender a responsabilização da Rússia por danos ambientais e a inclusão do crime de ecocídio (ou seja, crimes contra o meio ambiente) no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (TPI).
A Ucrânia conduz 14 investigações para subsidiar processos de ecocídio contra a Rússia no TPI.
Segundo Nadiya Stefaniv, juíza da Suprema Corte da Ucrânia, são casos como o suposto lançamento de produtos químicos em terras produtivas para reduzir a qualidade dos solos para a agricultura.
A juíza disse a Ecoa que a explosão da represa de Kakhovka "não foi a primeira tragédia ambiental e não será a última" desta guerra, mas tornou-se um símbolo por suas consequências devastadoras.
Durante a entrevista, na sede da Suprema Corte em janeiro deste ano, as sirenes de ataques aéreos soaram. O restante da conversa teve que ocorrer em um abrigo improvisado no subsolo do prédio, localizado na região central de Kiev.
O problema das minas - e de sua desativação
Em agosto de 2023, durante uma contra-ofensiva ucraniana, autoridades de Kiev disseram que o número de minas terrestres plantadas pelos russos era "insano" e que tinham encontrado uma densidade de até cinco artefatos explosivos por metro quadrado.
No fim do mesmo ano, o governo ucraniano estimou que cerca de 174.000 km2 —quase um terço do território do país— precisaria de desminagem, o que tornaria a Ucrânia o país mais minado do planeta, seguido por Afeganistão e Síria.
Embora a estimativa seja considerada exagerada por especialistas independentes, o problema das minas e munições não detonadas no país é real e deve levar décadas para ser resolvido.
Até junho de 2023, a organização Human Rights Watch tinha identificado a presença de minas terrestres em 11 das 27 regiões da Ucrânia, plantadas pelos dois lados do conflito.
A HALO Trust, ONG internacional de desminagem, calcula que até 2 milhões de minas tenham sido usadas nos dois primeiros anos da guerra. A organização afirma também que as terras agrícolas ucranianas foram dizimadas por minas e explosivos.
Além do impacto direto das explosões nos ecossistemas, o Grupo de Trabalho de Alto Nível sobre as Consequências Ambientais da Guerra cita outro desafio: o de remover os explosivos sem causar mais impacto, já que alguns métodos de desminagem podem causar danos ambientais irreparáveis.
O grupo defende a criação de um projeto para a remoção de minas em espaços naturais, geralmente não priorizados, e que o país encoraje práticas sustentáveis de utilização dos solos após a desminagem das terras.
Reconstrução verde
Em 24 de fevereiro de 2022, primeiro dia da invasão russa, um hospital na cidade de Horenka, próxima a Kiev, foi bombardeado. Um ano depois, o edifício havia sido reconstruído com duas novidades: uma central de energia solar e uma bomba de calor, que lhe daria autonomia energética durante cortes de eletricidade, comuns em tempos de guerra.
A recuperação do hospital de Horenka foi o projeto piloto do programa Green Reconstruction, promovido pelo Greenpeace com parceiros locais, que auxilia prefeituras de cidades ucranianas a reerguer edifícios públicos usando tecnologias ambientalmente sustentáveis.
Mesmo que o fim da guerra não esteja à vista, uma série de organizações preconizam uma reconstrução baseada em tecnologias verdes.
Quando o conflito completou um ano, a Comissão Europeia lançou o programa Phoenix, para apoiar autoridades ucranianas com estratégias de recuperação verde.
"Embora um rápido regresso à normalidade seja essencial, fixar-se no tipo errado de futuro é perigoso", diz um documento do programa, produzido por especialistas da Universidade de Oxford, que defendem que a Ucrânia "emerja das cinzas da guerra" para um novo modelo menos dependente de combustíveis fósseis e descarbonizado.
O Grupo de Trabalho de Alto Nível sobre as Consequências Ambientais da Guerra também destacou esse ponto em seu relatório, afirmando que, embora cientes das "enormes demandas e necessidades sociais que competem por recursos", consideram fundamental que o país faça uma transição para um modelo econômico com maior eficiência energética e menor emissão de gases do efeito estufa.
Entre as sugestões oferecidas, está implementar diretrizes para reciclagem de distritos de construção e para o descarte seguro de resíduos tóxicos, especialmente o amianto, que é um agente cancerígeno.