Aprovação de política pública pode acelerar economia circular no Brasil
Julia Moióli
Colaboração para Ecoa
25/04/2024 04h00
Especialistas em sustentabilidade têm apontado para a necessidade de uma política pública consistente que coloque a economia circular no mapa das responsabilidades dos setores público e privado de uma vez por todas.
O primeiro passo foi dado no último mês de março quando o Senado aprovou o projeto de lei que institui a Política Nacional de Economia Circular. Agora, o texto segue para a Câmara dos Deputados.
Trata-se de um conceito baseado na ideia de que se pode e deve evitar ao máximo o desperdício e aumentar o ciclo de uso de todo e qualquer material. Enquanto o modelo clássico, também chamado linear, se baseia em retirar da natureza, produzir e jogar fora, o circular tem o objetivo de fazer com que tudo retorne à cadeia de produção. Dessa forma, a extração de recursos naturais é reduzida, além de minimizar os gastos nos processos.
De autoria da Comissão de Meio Ambiente (CMA), o PL 1.874/2022 prevê a conscientização da sociedade sobre a economia circular, o estímulo e o financiamento à pesquisa, a promoção de processos destinados à adoção da circularidade na economia brasileira e a realização de compras públicas sustentáveis.
"A futura lei tem potencial para fazer avançar a reciclagem e a reutilização de materiais no país", afirma Pedro Maranhão, presidente da Abrema (Associação Brasileira de Resíduos e Meio Ambiente).
Embora 29,2% dos municípios brasileiros digam oferecer algum serviço de coleta seletiva de resíduos domésticos aos seus habitantes, como pontos de entrega voluntária e coleta domiciliar, o Panorama dos Resíduos Sólidos 2023, lançado pela Abrema, estima que a média da população urbana atendida por coleta seletiva porta a porta por município é de somente 14,7%, e o índice médio de reciclagem no país não passa hoje de 3,5% dos resíduos gerados.
Como funciona a economia circular
Pense em um produto simples que faça parte do seu dia a dia. Um par de calçados, por exemplo. Desde que nasceu, você provavelmente já teve alguns e conhece bem seu ciclo de vida: são produzidos pelo fabricante com matérias-primas extraídas do meio ambiente, você os usa e os descarta quando ficam apertados ou gastos demais.
O problema é que vivemos tempos de mudanças climáticas e, agora, a conta desse modelo linear de produção não fecha mais: é impossível seguir extraindo recursos da natureza e descartando-os em lixões e oceanos.
"A economia circular estimula o uso consciente dos recursos naturais", diz Fernando Beltrame, presidente da consultoria de sustentabilidade Eccaplan. "É bom para a sociedade e é bom para as empresas, porque reduz custos."
É o que acontece com a latinha de alumínio: há mais de uma década, mais de 95% de todas as embalagens do tipo produzidas no país são recicladas, em uma cadeia que conta com a participação da indústria, de catadores e do consumidor.
O que muda com o projeto de lei?
O principal ponto prático do PL é estimular as compras públicas sustentáveis. Isso dará vantagem a empresas em licitações públicas que atuem com economia circular.
"Embora mais detalhes ainda devam ser definidos, esse ponto é importante, porque permite a promoção do tema em escala: economia circular passa a ser um critério a mais a ser observado em compras públicas", diz Aldo Roberto Ometto, professor da USP (Universidade de São Paulo) e pesquisador do Instituto Fábrica do Milênio e do Núcleo de Manufatura Avançada.
Além disso, o projeto prevê a utilização para projetos de economia circular de dois fundos já criados por leis anteriores: o Fundo Social (de 2010, para atividades relativas à exploração de gás natural e outros recursos) e o Programa de Inovação para Competitividade (de 2001, para fomento de tecnologia).
No entanto, especialistas ouvidos por Ecoa afirmam que o impacto da lei tanto em termos de reciclagem e reutilização de materiais quanto na produção, no consumo e nas vendas de produtos no país não deve ser imediato.
"Ao contrário da Política Nacional de Resíduos Sólidos, que é uma lei setorial que detalha mais profundamente como devem ser geridos os sistemas de resíduos no país, regulando desde o que geramos em nossas casas até o que é produzido por mineradoras, pelo setor agropecuário, de eletrônicos etc, a Política Nacional de Economia Circular se estende por uma cadeia de atividades mais ampla, que vai desde o design dos produtos até o modo adequado de comercializá-los e, por isso, a lei é mais genérica, e sua consolidação deve se dar em um tempo mais alongado", diz Maranhão, da Abrema.
Mas a boa consequência virá: "No longo prazo, todas as cadeias produtivas serão afetadas", diz ele.
Pontos positivos e de atenção
"O Projeto de Lei é realista, no sentido de que não deseja desorganizar os sistemas produtivos brasileiros em curtíssimo prazo - ao contrário, estimula uma série de debates governamentais e políticos, pesquisas no setor e estímulos financeiros para iniciar o processo de transição do modelo linear para o circular", acredita Maranhão, da Abrema.
Ometto, da USP, destaca ainda aspectos da linguagem do texto, como a adoção do termo "economia circular" em vez de "circularidade": "Circularidade inevitavelmente recai em reciclagem, mas precisamos também considerar e fortalecer a substituição de produtos físicos por serviços de economia não materiais, especialmente com forte influência da digitalização - é o caso de serviços como Airbnb, Spotify e Uber."
O especialista também considera positivo o uso da expressão "pensamento sistêmico": "Quando a utilizamos, não tratamos só da gestão do recurso, mas da gestão da geração de valor, e o projeto aborda justamente a colaboração de organizações ao longo da cadeia para o benefícios e bem-estar da sociedade, formando um ecossistema circular."
Por outro lado, de acordo com os especialistas, alguns pontos ainda precisam ficar mais claros, como a inclusão e participação dos catadores no modelo, considerada fundamental para uma transição justa, e questões tributárias.
"A bitributação é recorrente e configura um dos principais entraves à cadeia de reciclagem no Brasil e isso faz com que o produto reciclado, que evita ou reduz o uso de matéria-prima virgem, acabe não tendo um preço competitivo", destaca Maranhão.
O que já fazem as grandes empresas?
De olho nas novas demandas do mercado, que cada vez mais valoriza os princípios de ESG, empresas médias e grandes já atuam para ampliar a economia circular.
A empresa de logística reversa GreenMining, por exemplo, usa um algoritmo para mapear pontos de geração de resíduos pós-consumo e, nas áreas de maior quantidade, instala sua central de recebimento. Qualquer pessoa pode levar resíduos e recebe um valor por eles.
De lá, tudo o que é coletado parte para reciclagem ou reutilização. Trata-se do projeto Estação Preço de Fábrica, com seis hubs, localizados em Juiz de Fora (MG), Camaçari (BA), São Paulo (SP), Embu das Artes (SP) e Lajeado (TO), que já arrecadou 2,375 toneladas.
A empresa também realiza coleta em condomínios e restaurantes por meio de coletores registrados (com carteira assinada e equipamentos de proteção). Somando todas as iniciativas, a empresa já deu um destino adequado a mais de 7.600 toneladas de resíduos.
Da mesma forma, a Cargill mantém o Programa Ação Renove o Meio Ambiente, criado pela marca Liza para dar um destino mais nobre ao óleo de cozinha, transformando-o em biodiesel. Desde 2010, a iniciativa já coletou mais de 12 milhões de litros de óleo usado, evitando a emissão de 144 mil toneladas de CO2, que equivalem às emissões de 17,7 milhões de árvores em toda a sua vida.
"Diferentemente de um resíduo sólido, como uma latinha, que pode ser recuperada até do lixo normal, com o óleo não tem volta", explica Marcio Barela, coordenador de sustentabilidade da empresa. "No entanto, esse resíduo que é jogado fora muitas vezes por falta de alternativas pode se transformar numa matéria-prima muito valiosa, que é o biodiesel.
O programa conta com mais de 6.800 pontos de entrega voluntária - geralmente localizados em supermercados, como Carrefour - em 20 estados do país e no Distrito Federal, de onde o óleo usado parte para o processamento, graças a uma rede de colaboração que inclui 20 empresas parceiras de logística, tratamento, produção e comercialização do biocombustível.
A Renner é outra que contempla o tema em sua estratégia de ESG, num dos mercados com mais desafios de sustentabilidade, o da moda. Entre as iniciativas em prol da circularidade estão parcerias com cadeia de fornecedores e universidades para o desenvolvimento de um fio reciclado pré-consumo, produzido a partir de sobras de corte de tecido; o programa de logística reversa EcoEstilo, que já arrecadou mais de 240 toneladas de embalagens e frascos de perfumaria e beleza e garantiu ao material destinação ambientalmente correta; o lançamento, pela marca Youcom, em 2020, da primeira calça circular pós-consumo do país, a partir de materiais arrecadados; e a aquisição do brechó online Repassa, em 2021, que minimiza o desperdício.
Atualmente, 80% das peças da Renner possuem atributos de sustentabilidade, ou seja, parte de sua composição é de materiais como algodão e viscose certificados e fio reciclado. Também são usados processos de redução no uso de água e componentes químicos. "Até 2030, também nos comprometemos a incorporar os princípios da circularidade no desenvolvimento de todos os nossos produtos, matérias-primas e serviços", conta Regina Durante, diretora de gente e sustentabilidade da Renner.
De acordo com a Renner, apesar de não haver dados consolidados sobre a redução do uso da água na fabricação, em 2023, 51% das peças de jeans e sarja foram classificadas como de baixo consumo de água e 38% dos fornecedores, com práticas de recirculação de água em seus processos. O programa de Gestão de Químicos cobre 100% cadeia do jeans nacional e está avançando na cadeia de fornecedores internacionais, alcançando 87% de adesão aos testes de substâncias restritas nesta cadeia.
Como o consumidor pode contribuir?
Não é à toa que a Política Nacional de Economia Circular prevê a conscientização da sociedade sobre o tema: "Ao entender como o processo produtivo das coisas que ele compra funciona, o consumidor passa a ter um papel fundamental de identificar as empresas que se dedicam mais a esse trabalho e cobrá-las diretamente", afirma Lúcio Vicente, diretor-geral do Instituto Akatu, organização sem fins lucrativos voltada à sensibilização, mobilização e engajamento da sociedade para o consumo consciente. "Ele passa a ser um vigilante contínuo no processo de responsabilização de toda a cadeia produtiva, e isso abre espaço para mudanças estruturais."
De acordo com Vicente, apesar de já ter assimilado a ideia de coleta seletiva e reciclagem, pesquisas mostram que ainda faltam ao consumidor brasileiro conhecimentos sobre como o processo de circularidade também é empregado dentro da produção do produto.
"Ao entender que o conceito vai muito além desses tópicos e que, antes de tomar a decisão de compra, é necessário pesquisar se há compromisso com o tema, sem que isso implique em custo elevado, cria-se no mercado uma tendência natural de que as empresas busquem sua diferenciação com esse tipo de transparência."