Demitarismo: dieta ajuda a enfrentar gás esquecido do aquecimento global
Nem veganismo nem vegetarianismo. O estudo Appetite for Change, lançado recentemente pela ONU (Organização das Nações Unidas), sugere que a redução pela metade no consumo de carne e laticínios pode ajudar a enfrentar o aquecimento global. É o chamado demitarismo ('demi' de metade), uma alimentação que busca cortar o consumo desses alimentos como forma de mitigar a poluição pelo óxido nitroso, o N2O.
Substituir alimentos de origem animal, especialmente de bovinos, por vegetais reduziria a poluição e melhoraria a saúde humana, afirma o estudo, que se baseou na dieta da população europeia.
Embora a indicação da OMS (Organização Mundial de Saúde) para a ingestão diária de proteína seja de 0,8 grama para cada quilo do peso corporal, na Europa esse consumo é quase o dobro do recomendado, mostrou o estudo.
"No Brasil, também se consome mais do que é preciso, mas essa média varia de acordo com a região, sendo o Sul e Sudeste as regiões com o maior consumo", analisa Gabriela Bielefeld Nardoto, professora do Departamento de Ecologia da UnB (Universidade de Brasília). "Estamos falando de um contexto urbano em que se consome muita proteína e que também tem relação com o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano)", pontua.
Em localidades onde há excesso de consumo de produtos de origem animal, uma mudança na dieta com a substituição por vegetais garante a quantidade necessária diária de proteínas, além de reduzir problemas de saúde e a consequente sobrecarga nos serviços públicos, explica a professora da UnB
Por que o N2O é um problema
Um dos principais gases causadores do efeito estufa, o N2O é muitas vezes chamado de 'gás esquecido do aquecimento global'. Enquanto as emissões de CO2, o gás mais lembrado do efeito estufa, são provenientes da queima de combustíveis fósseis, queimadas e desmatamento, o N2O é resultado da produção de alimentos.
Cada molécula de óxido nitroso presente na atmosfera é até 300 vezes mais potente que o carbono na retenção de calor. Entre os gases prejudiciais à atmosfera, esse é um valor importante, considerando que o metano (CH4), o terceiro gás envolvido no efeito estufa, tem potencial de aquecimento 21 vezes maior que o carbono.
Uma molécula de N2O pode permanecer na atmosfera por até 250 anos, explica Gabriela. Para ela, esse tipo de emissão, originada em grande parte na agricultura, é invisível para a maioria da população. "É algo que ainda está longe da realidade das pessoas", comenta. É por isso, salienta, que o mais comum é ouvir falar do carbono como vilão do aumento das temperaturas.
Origem das emissões
Na prática, a emissão de óxido nitroso está relacionada a um elemento importante para a vida no planeta, o nitrogênio. Esse é um componente essencial para a nutrição das plantas e está presente em 78% do ar que os seres vivos respiram, explica Letícia de Pierri, professora do curso de Agronomia da PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná). "Mas essa concentração não afeta o clima. O problema está na molécula do óxido nitroso, a N2O", enfatiza.
A emissão de N2O é resultado de mudanças no ciclo do nitrogênio que tiveram início com a intensificação da atividade agrícola. Isso acontece devido a práticas como aplicação massiva de fertilizantes nitrogenados no solo e a decomposição de matéria orgânica deixada por bovinos em pastagens.
Com o aumento da disponibilidade de nitrogênio em solos degradados, bactérias desnitrificantes produzem uma reação química nas áreas que recebem os dejetos desses animais.
Essa dinâmica leva à criação de áreas com menor oxigenação e à produção desse gás nocivo. "É essa reação que então converte o amônio (NH4) em óxido nitroso (N2O), muito potente para o aquecimento global", define.
Mas o problema não se restringe aos derivados de origem animal. O uso de fertilizantes nitrogenados também contribui para o ciclo do óxido nitroso. Nesses casos, se o solo da plantação estiver com baixa concentração de oxigênio, como em culturas de arroz irrigado, ocorrerá a mesma reação que converte nitrogênio em óxido nitroso, explica a professora.
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Mas a dieta sozinha pode não trazer os efeitos que o planeta necessita, alertam as especialistas. Para resultados mais eficazes, é fundamental que haja uma combinação entre o demitarismo e técnicas de gestão agrícola sustentável, da produção aos centros de consumo. "A agricultura é vista como vilã, mas ela também pode ser a chave para solucionar o problema da crise climática", reforça Letícia de Pierri.
Além das mudanças na dieta, o estudo sugere outras formas de lidar com o N2O:
- Mais eficiência na aplicação de fertilizantes e no armazenamento de esterco;
- Reduzir o desperdício de alimentos por varejistas e consumidores, diminuindo assim a quantidade que precisa ser produzida;
- Melhor tratamento de águas residuais para capturar o nitrogênio do esgoto, o que reduziria as emissões e permitiria que nutrientes fossem usados de volta nos campos;
- Auxiliar na transição para dietas mais equilibradas, fornecendo incentivos financeiros para alimentos com baixo impacto ambiental
- Uma combinação de políticas que abordem a produção e o consumo de alimentos para melhor apoiar uma transição para sistemas sustentáveis;
- Mobilizar agricultores, indústria, governo e consumidores para trabalharem juntos para reduzir as perdas de nitrogênio em todo o sistema alimentar, por exemplo, através do estabelecimento de plataformas de governança em níveis nacional, regional e local.
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