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Desmatamento cresce no cerrado, e não há lei para impedir

Área de Cerrado desmatada para plantio no município de Alto Paraíso (GO) Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Thais Matos

Colaboração para Ecoa

23/05/2024 04h00Atualizada em 29/05/2024 10h15

Enquanto o Brasil comemora a diminuição do desmatamento na Amazônia e na Mata Atlântica, o cerrado vive uma ameaça crescente e difícil de ser combatida. O índice de desmatamento no bioma não parou de subir nos últimos cinco anos, somando mais de 11 mil quilômetros quadrados destruídos apenas em 2023, segundo dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).

A maior parte da degradação no cerrado acontece de forma legal

Bioma tem apenas 3% de seu território em proteção integral

Código Florestal determina a preservação de apenas 20% do cerrado

Percentual sobe para 35% nas áreas de cerrado dentro dos estados da Amazônia Legal, o que equivale a apenas 37% do bioma

Propriedades privadas têm autorização para desmatar até 80% da área

Os alertas de desmatamento cresceram 23,7% em março deste ano em relação ao mesmo período do ano passado

A expansão da agricultura é uma das principais causas para o avanço do desmatamento

73,5% da área desmatada em 2023 ocorreu dentro de propriedades registradas no CAR (Cadastro Ambiental Rural)

Nas áreas de floresta, Código Florestal protege 80% da área com cobertura vegetal nativa em propriedades privadas

As áreas sob aviso chegaram a 1.475 quilômetros quadrados no primeiro trimestre, o maior valor da série histórica iniciada em 2018. Esses alertas apontam evidências de alteração da cobertura florestal e servem de base para fiscalização pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).

Depois de os alertas de desmatamento no bioma terem atingido o maior valor da série histórica no primeiro trimestre do ano, eles apresentaram queda em abril. De acordo com o Inpe, a medição de abril precisa ser vista com cautela, uma vez que a grande presença de nuvens durante o mês pode ter comprometido a captação das imagens. Até o momento, as áreas sob aviso passaram dos dois mil quilômetros quadrados. Esses alertas apontam evidências de alteração da cobertura florestal e servem de base para fiscalização pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).

São dois dados diferentes. Os alertas são colhidos por um sistema de monitoramento em tempo real que identifica perda de vegetação e emite um alerta para o Ibama, que faz a fiscalização in loco.

A área desmatada corresponde ao incremento de desmatamento registrado e consolidado anualmente. Basicamente, o incremento de desmatamento é o dado oficial da perda de vegetação, enquanto os alertas são uma base para a ação de fiscalização.

Exploração agrícola

A expansão da agricultura nos estados que abrigam o cerrado, sobretudo no Matopiba (acrônimo para Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia) é uma das principais causas para o avanço do desmatamento.

A região é considerada a última fronteira agrícola explorável do país e tem um peso relevante para a produção nacional. Com intensa cultura de soja, milho e algodão, ela é a quarta maior produtora de grãos do Brasil, segundo o governo federal.

As terras do Matopiba são atrativas por serem consideravelmente mais baratas que as dos polos tradicionais do Centro-Sul do Brasil. Além disso, sua topografia marcadamente plana possibilita a mecanização da lavoura e, consequentemente, aumento da produtividade, segundo a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária).

Por tudo isso, a região é palco de uma expansão forte da produção. Nos últimos 10 anos, a produção de grãos aumentou 92%, de 18 milhões para 35 milhões de toneladas por safra. E a tendência é que mais áreas sejam utilizadas para essa finalidade.

"As culturas de soja avançaram em áreas de vegetação nativa, caracterizando uma conversão direta para soja. Porém, áreas de pastagens também estão sendo convertidas para soja (conversão indireta), que 'empurra' a pastagem e leva ao desmatamento de novas áreas", explica Daniel Silva, especialista em Conservação do WWF-Brasil.

Pressão internacional

Questões geopolíticas também têm um peso nesse cenário. Na avaliação de Mikaela Weisse, diretora do projeto Global Forest Watch do WRI (World Resources Institute), o aumento pode ser uma reação antecipada à lei da União Europeia que determina a proibição da importação de produtos provenientes de áreas com qualquer nível de desmatamento identificado até dezembro de 2020 - seja legal ou ilegal.

De acordo com nota técnica do MapBiomas, a definição de desmatamento na proposta de regulamentação europeia é baseada na definição de floresta da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura). A organização exclui áreas relevantes de biomas na América do Sul, como cerrado e pampa.

"Por conta da definição de floresta que eles usam no regulamento, a maior parte do cerrado não será contabilizada. Algumas áreas atendem a essa definição, mas grande parte da vegetação natural, não. Então há muitas preocupações sobre o que vai acontecer", alerta a pesquisadora.

Na avaliação de Cláudio Almeida, coordenador do Programa de Monitoramento BiomasBR do Inpe, o que acontece é um tipo de "especulação", uma vez que produtores podem intensificar a exploração da terra antes que a regulação entre completamente em vigor.

Permissão para desmatar

Outro problema está ligado à legislação brasileira. De acordo com Silva, o bioma tem apenas 3% de seu território em proteção integral. Enquanto o Código Florestal protege 80% da área com cobertura vegetal nativa em propriedades privadas nas áreas de floresta, no cerrado a lei determina a preservação de apenas 20%.

O percentual sobe para 35% nas áreas de cerrado dentro dos estados da Amazônia Legal. Mas apenas 37% do bioma fica nos estados da Amazônia Legal (Mato Grosso, Tocantins e Maranhão, além de pequenas ilhas de vegetação em Amapá, Roraima e Amazonas). O restante está fora dessa área, abrangendo Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Bahia, Piauí, Rondônia, Paraná, São Paulo e Distrito Federal.

Dados do Deter (Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real), do Inpe, mostram que 73,5% da área desmatada em 2023 ocorreu dentro de propriedades registradas no CAR (Cadastro Ambiental Rural).

Todo imóvel rural brasileiro precisa estar inscrito no CAR, um registro público com a finalidade de integrar as informações ambientais justamente para ações de controle do desmatamento.

Enquanto o desmatamento aumentou no Cerrado como um todo em 2023, ele caiu nas unidades de conservação (de 795 mil para 588 mil quilômetros quadrados) e nas áreas indígenas (de 77,2 mil para 72,7 mil quilômetros quadrados), de acordo com números registrados pelo Prodes, também do Inpe.

O Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima reconhece a dificuldade de atuar na região. "A situação limita a atuação do governo nas ações de comando e controle. Precisamos fazer um debate nacional para reconhecer que essa autorização de 80% de desmatamento do Cerrado pode ser insustentável", avalia Raoni Rajão, diretor de Políticas de Controle do Desmatamento e Queimadas do ministério.

Outro problema é a falta de transparência na emissão de autorizações de supressão de vegetação entre os poderes. Segundo o diretor, muitas vezes o Ibama verifica a presença de desmatamento em propriedades rurais, mas os produtores apresentam autorização emitida por outras instâncias, como os municípios. "Existe uma insegurança jurídica desses títulos e falta de clareza sobre quais são os requisitos para essas autorizações".

Apesar da grande responsabilidade das ações legais, olhar para as ilegais ainda é necessário. Segundo Rajão, há estados que não têm seus dados de monitoramento integrados ao sistema nacional e isso dificulta ações de fiscalização. Por isso, avançar na integração dos dados é um dos desafios e focos de ação do ministério, afirma.

Enfraquecimento da fiscalização e falta de atenção

Os 11 mil quilômetros quadrados de vegetação perdidos em 2023 representam a maior área desmatada desde 2015. Naquele ano, o desmatamento na região começou a cair, chegando a um mínimo de 6.400 quilômetros quadrados devastados em 2019. Desde então, a cifra voltou a subir.

Tanto Almeida quanto Silva avaliam que esse aumento gradual também é resultado do enfraquecimento da fiscalização ambiental registrado no último governo. De acordo com o governo federal, os autos de infração aplicados pelo Ibama por crimes contra a flora no Cerrado em 2023 foram 45% superiores à média dos quatro anos anteriores. Embargos, apreensão e destruição de equipamentos também aumentaram.

A falta de atenção ao Cerrado no debate público também é um problema, aponta Weisse. "O plano de ação para proteção da Amazônia que o governo Lula apresentou não aconteceu no Cerrado na mesma medida", avalia a diretora. Silva, da WWF-Brasil, afirma que historicamente há pouca atenção aos biomas savânicos, nacional e internacionalmente.

Como mudar o cenário

Além das ações citadas pelo diretor do Ministério do Meio Ambiente, um dos pontos implementados foi a incorporação dos outros biomas - inclusive o Cerrado - à norma de crédito rural, que restringe o acesso a crédito para quem desmatar ilegalmente. Antes da revisão, a norma era restrita à Amazônia.

O governo também estuda desincentivar o desmatamento legal por meio da outorga de água (concessão para uso de recursos hídricos, que pertencem aos estados ou à União) para quem conservar mais Cerrado do que o exigido.

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