Energia solar transforma comunidade ribeirinha na Amazônia
Antônia de Fátima Queiroz, 36, viu os dias ficarem mais leves depois que a comunidade onde ela mora, Ilha das Cinzas, no estado do Pará, finalmente teve acesso à energia elétrica. Diariamente, ela tinha que carregar cerca de seis baldes com 20 litros de água para conseguir realizar as atividades domésticas. Pela falta de luz, a comunidade não dispunha de um sistema de bombeamento de água e restava fazer a coleta do próprio rio.
"Pegávamos os baldes, enchíamos e carregávamos para casa, onde tratávamos com cloro. Tínhamos que fazer isso para todos os nossos afazeres, desde tomar banho até lavar louça e roupas. Ficávamos indo buscar água praticamente o dia todo. Quando surgiram os painéis solares, tudo mudou", diz ela, que é mãe de duas crianças.
Ilha das Cinzas faz parte do arquipélago de Marajó, um conjunto de ilhas fluviomarinhas - banhadas tanto por águas fluviais quanto oceânicas - situado na foz do rio Amazonas, no norte do estado do Pará. Até 2011, a população local estava entre o 1 milhão de pessoas que ainda vivem sem acesso a uma rede de energia elétrica.
"O acesso era totalmente zero. As famílias que tinham um pouco mais de condições compravam um gerador que funcionava à noite, geralmente entre às 18h e 22h, e cujo motor era ativado a diesel ou gasolina. Quem não podia comprar esse equipamento, utilizava vela e lamparina", conta Francisco Malheiros, presidente da ATAIC (Associação dos Trabalhadores Agroextrativistas da Ilha das Cinzas).
O cenário mudou em meados de 2011, quando a comunidade ribeirinha ganhou um prêmio por desenvolver uma tecnologia de coleta de camarão e decidiu reverter o valor em um projeto de painéis solares fotovoltaicos, que começou a abastecer a sede da instituição. A mudança trouxe para os moradores o desejo de multiplicar ainda mais os fotovoltaicos pela ilha.
"O que a energia trouxe foi a capacidade de melhorarmos aquilo que já fazíamos na comunidade. Com energia solar você tem acesso à informação, você tem acesso a conhecimento, à internet, abre uma janela para um mundo de possibilidades", explica Malheiros, que também é morador da ilha.
Na vida de Queiroz, a chegada da eletricidade rendeu inúmeros frutos. "Agora, podemos usar uma batedeira para fazer o açaí, conseguimos fazer o chopp [tipo de sorvete local armazenado em saquinhos] para uma renda extra, já que temos uma geladeira para armazenar os alimentos, podemos usar máquina de lavar e temos sistema de bombeamento de água", conta. "Hoje, é muito raro a gente ver alguém indo buscar água em baldes".
O grande projeto de implementação das placas fotovoltaicas na comunidade ocorreu em 2018. Ele foi financiado pela Fundação Honnold (EUA), com parcerias da Embrapa, da Universidade Federal do Amapá e da Arizona State University (EUA), além do Instituto de Tecnologia Karlsruhe (Alemanha). Malheiros explica que a união de esforços se deu especialmente para capacitar a comunidade a instalar e solucionar problemas relacionados aos próprios painéis de forma autônoma, além de trabalhar o uso social da energia.
"A gente sempre fala: energia por si só não resolve o problema. Tem que pensar nessas outras possibilidades que podem ser acessadas com a energia. E a partir dela discutir produção, gênero, juventude, sóciobiodiversidade, e aquecimento global. A energia não é para trazer evasão escolar ou violência, por exemplo."
Cada associado tem o próprio sistema e, atualmente, o custo fica apenas para a manutenção. O modelo de implementação da energia renovável na ilha está em expansão e a expectativa é a de que outras quatro comunidades vizinhas sejam beneficiadas. "O nosso grande desafio é integrar essas tecnologias com o meio ambiente. Ele é a nossa casa, não temos como separá-lo das nossas atividades cotidianas."
Benefícios múltiplos
Na comunidade, o extrativismo é a principal atividade econômica - e de subsistência. Os principais produtos são o açaí e o peixe, proveniente da pesca artesanal. A falta de energia impactava diretamente na produção local, já que para além da questão do armazenamento de alimentos, a comunidade vivia com outras limitações.
"Comemos açaí todos os dias e na época tínhamos que fazê-lo na mão, todos os dias, porque não tínhamos onde armazená-lo. E isso era uma tarefa especialmente das mulheres, que se dedicam mais à cozinha. Diminuiu o trabalho da gente, veio beneficiar muito mais as mulheres", explica Queiroz.
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Quero receberO próprio projeto de implementação do sistema solar na comunidade foi feito com foco na questão alimentar, com o título de "Energia Solar para Soberania Alimentar".
"A segurança alimentar fez parte importante dos nossos programas de capacitação. Porque se a pessoa tem comida em casa, consegue pensar em outras coisas com a barriga cheia. E, nesse processo, ainda fortalecemos o açaí como produto nativo da região e alimento que está presente em todas as refeições."
Queiroz diz que a possibilidade de refrigerar os alimentos teve impacto até na saúde das pessoas. "Sem energia, a gente tinha que salgar tudo. Comprávamos sal para não estragar a comida e por esse motivo muitas pessoas acabavam comendo comidas muito salgadas", explica.
Energia descentralizada na Amazônia
Um estudo publicado pelo IEMA (Instituto de Energia e Meio Ambiente) em 2021 mostrou que cerca de 1 milhão de pessoas vivem em situação de pobreza energética no Brasil. Isto é, não possuem acesso formal à eletricidade, o que pode trazer como consequência a intensificação de vulnerabilidades das comunidades, com impactos na alimentação ou mesmo na saúde, por exemplo. A região da amazônia brasileira é onde mais falta energia elétrica no país.
"As concessionárias, por lei, têm que atender a todos os brasileiros, mas muitas vezes existe esse desafio logístico porque vemos comunidades muito espaçadas. Além disso, há uma questão da falta de um sistema único de informação, já que a realidade da Amazônia é muito dinâmica, com populações que migram de lugar para lugar. E, além disso, há uma outra questão que é de aprimorar as políticas públicas, já que a energia elétrica visa resolver um problema maior que é o acesso a qualidade de vida, educação, e saúde", explica Ricardo Baitelo, coordenador de Projetos no IEMA .
Desde 2003, o Programa Luz Para Todos, do Ministério de Minas e Energia, busca expandir as redes de distribuição de energia para as áreas da Amazônia Legal. Ele foi relançado no ano passado, com enfoque a populações remotas da região.
"O programa deu um salto de qualidade de vida para o amazônida, isso é inquestionável. No entanto, quando estamos falando de Luz Para Todos, estamos falando dessa energia que chega por meio da rede de energia, das grandes linhas de distribuição. E isso é algo que podemos repensar, já que temos lugares muito distantes ou onde ocorrem tempestades e fenômenos climáticos em que uma árvore cai e arrebenta esse fio. Daí, a população pode ficar até 7 dias sem energia até identificar o local do incidente e resolver isso", comenta Valcléia Solidade, Superintendente de Desenvolvimento Sustentável de Comunidades da FAS (Fundação Amazônia Sustentável).
Há cerca de quatro anos, a FAS tem implementado um modelo de energia descentralizada na floresta tropical. A ideia é implementar a energia solar em diferentes comunidades da região para que, assim como na Ilha das Cinzas, os próprios habitantes possam realizar a manutenção e o monitoramento desses fotovoltaicos de forma autônoma.
"Fizemos uma série de trabalhos e pesquisas, testes de energia fotovoltaica para as famílias, e desenvolvemos projetos que de uma certa forma fosse adequado para se construir modelos de energia de módulos isolados", explica Solidade.
Só na comunidade Santa Helena do Inglês, no norte do estado do Amazonas, pioneira no projeto de fotovoltaicas, já são 30 casas atendidas. "É um modelo justamente para que a luz chegue em lugares que um linhão certamente não vai chegar. Precisamos entender que modelos servirão a essas pessoas" diz Solidade.
Não dá para aplicar para a Amazônia a mesma fórmula que se aplica em outros estados. Valcléia Solidade, Superintendente de Desenvolvimento Sustentável de Comunidades da FAS
Para Baitelo, a descentralização pode ser uma solução para as comunidades mais remotas, mas ao falar de matriz energética brasileira como um todo, não é necessariamente a saída para democratizar o acesso à energia elétrica em todo o território nacional.
"Ela é importante e cabível, mas, se a gente analisa a matriz brasileira como um todo, diria que não é uma resposta única. Ela atende essas comunidades remotas, mas para reduzir [o preço] da energia brasileira na totalidade não significa que não teremos projetos de infraestrutura de transmissão e distribuição de energia. É uma solução setorizada e combinada", diz.
Com a Cúpula do G20 marcada para novembro deste ano no Brasil e trazendo a questão da transição energética como tema prioritário, Solidade argumenta que as vivências da Amazônia podem contribuir com o debate.
"A Amazônia não é uma região isolada, faz parte do Brasil como um todo, com suas especificidades e desafios. Mas devemos ter um olhar diferenciado e fazer um investimento que leve em consideração todas essas questões", diz. "Há uma série de modelos que existem e podem ser replicados. Falta de certa forma um olhar mais carinhoso para as populações que estão em territórios isolados e um olhar mais estratégico do ponto de vista que a Amazônia é uma potência".
Esta reportagem foi produzida como parte do Programa de Mentorias do Climate Tracker América Latina
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