O que aconteceria se Mediterrâneo virasse pântano? Isso já rolou no passado

O que aconteceria se transformássemos todo o Mar Mediterrâneo em um gigantesco pântano salgado? Sua fauna sobreviveria? E quanto tempo levaria para se recuperar? Essas perguntas pareceriam inconsequentes se não fosse pelo fato de que um arquiteto bávaro dedicou boa parte de sua vida a esse projeto: construir uma grande represa no Estreito de Gibraltar e deixar o Mediterrâneo secar para colonizar a terra recuperada do mar.

Herman Sörgel organizou palestras e documentários e arrecadou fundos até a década de 1950 para um projeto que, segundo ele, promoveria a cooperação entre a África e a Europa e eletrificaria os dois continentes com projetos hidrelétricos gigantescos.

O que Sörgel não sabia era que seu sonho já havia sido realizado 5,5 milhões de anos antes, no final da era do Mioceno, sem nenhum outro projeto por trás, a não ser as leis da natureza.

Quando o Mediterrâneo secou

Desde a década de 1970, várias gerações de geólogos e geofísicos marinhos confirmaram a existência de uma camada de sal de um a três quilômetros de espessura enterrada na maior parte da parte mais profunda do Mediterrâneo.

Trata-se de quase um milhão de quilômetros cúbicos de sal, o que atesta um breve período de isolamento do Mediterrâneo em relação ao resto do oceano. Breve no sentido geológico, pois o episódio durou cerca de 190 mil anos. E não é só isso: o clima seco do Mediterrâneo fez com que suas águas evaporassem e expôs grande parte do fundo do mar aos elementos após a precipitação de todo esse sal.

O culpado não foi um arquiteto alemão excêntrico, mas a tectônica de placas. A bacia do Mediterrâneo, presa entre dois continentes que continuam a se aproximar em até dois centímetros a cada ano, foi isolada do Atlântico e suas águas evaporaram rapidamente devido ao clima árido que domina nosso planeta nessas latitudes.

Esse cenário, conhecido como a crise de salinidade messiniana (o último período do Mioceno), é o maior cataclismo sofrido pela Terra desde a queda do meteorito que exterminou os dinossauros não voadores e a era mesozóica, há 65 milhões de anos.

Como resultado, nenhum experimento de geoengenharia é necessário para responder à pergunta inicial: quão resistente é a vida marinha a uma crise ambiental dessa escala?

A resposta acaba de ser publicada na revista Science, em um estudo liderado por Konstantina Agiadi, da Universidade de Viena, em colaboração com o CSIC e 25 paleontólogos de 25 institutos europeus. Após reunir todos os dados fósseis do Mediterrâneo de entre 11 milhões e 2 milhões de anos atrás, nossos resultados sugerem que a vida marinha nativa foi praticamente extinta durante o isolamento do Mediterrâneo, e que a recolonização subsequente por espécies do Atlântico deu origem à fauna mediterrânea como a conhecemos hoje.

Espécies nativas, extintas e migrantes

Ao analisar estatisticamente as informações de mais de 750 artigos científicos, conseguimos identificar 22.932 amostras fósseis de vida marinha, documentando 4.897 espécies mediterrâneas antes da salinização do Mediterrâneo. Das 779 espécies possivelmente endêmicas (encontradas apenas no Mediterrâneo), apenas 86 ainda estavam presentes após o fenômeno da salinização.

Por exemplo, todos os corais tropicais que eram abundantes no Mediterrâneo antes da gigantesca mudança ambiental desapareceram. Por outro lado, algumas espécies de sardinhas aparentemente endêmicas conseguiram sobreviver. Um exemplo de mamífero sobrevivente é o sirênio, parente dos atuais peixes-boi e dugongos (também conhecidos como ?vacas marinhas?).

Devido ao registro fóssil limitado e fragmentado, não podemos ter certeza de que essas espécies eram todas endêmicas ou que não teriam sobrevivido fora do Mediterrâneo, daí o valor de realizar esse estudo estatisticamente com um grande número de espécies. Mas, entre as que eram, onde conseguiram sobreviver e que refúgios encontraram para evitar o aumento radical da salinidade e da temperatura?

Essas perguntas continuam sem resposta, mas conseguimos estabelecer que as mudanças nas populações se devem à substituição por espécies do Atlântico após a reinundação, e não à rápida adaptação ao novo ambiente hipersalino. Em outras palavras, a vida não teve tempo de se adaptar, e as espécies extintas foram substituídas por espécies exóticas do Atlântico.

Espécies icônicas, como o grande tubarão branco e o golfinho, apareceram pela primeira vez no Mediterrâneo apenas depois da crise. E ainda mais interessante: a atual maior riqueza da fauna do Mediterrâneo ocidental foi estabelecida após a reinundação, enquanto anteriormente o número de espécies era maior no Mediterrâneo oriental (mares Jônico e Levantino).

Lições sobre extinções em massa

O impacto do isolamento do Mediterrâneo em sua fauna e flora foi enorme, destruindo a maioria de seus ecossistemas e conectividade. Outro resultado importante que obtivemos ao estudar esse gigantesco experimento natural é que a recuperação em termos de números de espécies levou mais de 1,7 milhão de anos. Essa lenta recuperação da riqueza dos ecossistemas mediterrâneos fornece a primeira quantificação detalhada da resposta biológica estatística a um evento de extinção dessa magnitude.

Atualmente, a biodiversidade do Mediterrâneo é muito alta graças à presença de inúmeras espécies endêmicas. Nossos resultados sugerem que esse também era o caso há 6 milhões de anos, mas que a grande maioria dessas espécies endêmicas desapareceu durante o isolamento e a salinização do Mediterrâneo.

E talvez outra lição aprendida com esse estudo seja que, por mais tentador que seja sonhar em manter a atual taxa de emissões de gases estufa e a destruição de ecossistemas, vale a pena aproveitar as experiências do passado geológico da Terra em vez de fazer experimentos. O Mediterrâneo, apesar de se manter como um reservatório de espécies, levou milhões de anos para se recuperar. Ninguém sabe ainda quanto tempo levará para a vida marinha se recuperar do tipo de mudança em escala global que está em andamento.The Conversation

Daniel García-Castellanos, cientista do Instituto de Geociências de Barcelona (Geo3Bcn - CSIC)

Este artigo é republicado de The Conversation sob a licença Creative Commons. Leia o artigo original aqui.

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