Redução do período de chuvas destrói produção de alimentos no Cerrado
Adriana Amâncio
Colaboração para Ecoa, de Recife
02/10/2024 05h30
Antônio Veríssimo, 58 anos, vive na terra indígena Apinajé, no estado de Tocantins. Pai de dez filhos, ele se desdobra com R$ 750 do Bolsa Família para alimentar a família. É que a estiagem prolongada que atinge o Cerrado destruiu a sua plantação. Feijão, milho, batata, abóbora e melancia: nada vingou. Só a mandioca escapou. "Antigamente, a chuva chegava em setembro, depois passou a chegar em novembro. Agora, veio chover só em janeiro. Perdi tudo o que plantei", lamenta.
A dificuldade enfrentada por seu Antônio para botar comida na mesa da família é reflexo das mudanças climáticas na oferta e na qualidade dos alimentos. É o que aponta o estudo "O nexo entre a mudança climática, sistemas alimentares e saúde humana: Uma estrutura de pesquisa interdisciplinar no Sul Global" ao qual Ecoa teve acesso com exclusividade.
A pesquisa foi elaborada por um grupo de cientistas de 5 universidades brasileiras: UFPE, USP, UFRN, UFPA e UFPB. Participaram do estudo nutricionistas, cientistas sociais, ecólogos e especialistas ligados à Resiclima, uma rede de colaboração que estuda os impactos das mudanças climáticas em diversos campos da sociedade.
Como a renda é pouca, Antônio opta por alimentos industrializados, que são mais baratos, mas bem diferentes do que ele produz há décadas. "Quando dá fruta, a gente faz suco de caju. Quando não dá, no supermercado vem aqueles sucos pintados [suco em pó]. Depender de comida da rua é ruim, perde a diversidade, só tem industrializado", avalia. As folhas das plantas ficaram murchas. A espiga do milho não desenvolveu todos os gomos. O pé de abóbora não cresceu e tampouco deu frutos. Dias de trabalho e a alimentação dos próximos três meses perdidos.
"Há 30, 40 anos chovia bem por aqui. Agora, o tempo está quente e o solo fica seco", diz o agricultor. Cientistas já confirmaram que a chuva vem diminuindo no bioma. Entre os anos de 1960 e 1990, o período chuvoso da região durava 103 dias. Hoje, trinta anos depois, caiu para 98 dias.
De acordo com o estudo publicado no periódico Environmental Science & Policy, que investigou diversas produções acadêmicas publicadas em veículos de relevância científica, fenômenos climáticos como secas prolongadas e chuvas intensas alteram o ciclo hídrico, modificando o solo. Essas mudanças radicais interferem no desenvolvimento da planta, fazendo com que elas não se desenvolvam ou morram encharcadas por excesso de água.
Sávio Gomes, professor do Departamento de Nutrição do Centro de Ciências da Saúde da UFPB (Universidade Federal da Paraíba), fez parte da pesquisa e explica que esses fenômenos "reduzem a quantidade de alimentos e elevam o preço daqueles poucos alimentos in natura que são ofertados no mercado".
Um exemplo recente é o preço do arroz no Rio Grande do Sul, que disparou com um acréscimo de 13,2% por causa das enchentes. As secas prolongadas e os incêndios no Cerrado também devem refletir nas cifras dos alimentos nos próximos meses.
Em momentos como este, observa Gomes, a indústria tende a oferecer com mais intensidade opções de alimentos mais baratos, especialmente para que as famílias de baixa renda façam substituições. "Com isso, o consumo de alimentos ultraprocessados ocupa um percentual maior no cardápio, provocando uma dupla carga da má nutrição, em que as pessoas sofrem, ao mesmo tempo, com a desnutrição e a obesidade", explica.
O pesquisador explica que os alimentos industrializados basicamente possuem calorias e poucos ou nenhum micronutriente, a exemplo do ferro e zinco. "Sem contar que os componentes químicos que existem nesses produtos contribuem com a obesidade. É por isso que a pessoa que os consome em excesso engorda, mas não se nutre", detalha.
Quem viveu na pele esse problema foi o contador Márcio Almeida, 40 anos, morador do bairro Sarandi, um dos mais afetados pelas enchentes ocorridas em Porto Alegre em abril. Ele, que consumia arroz, feijão, legumes e frutas, viu tudo mudar de repente.
Com as inundações, a Ceasa (central de abastecimento), que ficava a 3 km da sua casa, foi transferida para 15 km de distância. Os supermercados ficaram desabastecidos de alimentos in natura e só ofereciam enlatados, congelados e embutidos e, mesmo assim, o preço da comida aumentou. "Eu voltei a consumir frutas e verduras somente em agosto, ou seja, quatro meses depois das enchentes. Mas era o que dava", explica.
O estudo apontou também prejuízos na qualidade nutricional dos alimentos. Gomes explica que "o excesso de CO2 na atmosfera vem alterando o clima e consequentemente gerando alimentos com deficiência nutricional, ou seja, com menos micronutrientes".
Os micronutrientes como ferro e zinco têm uma função importante na sobrevivência humana. "O ferro, por exemplo, evita a anemia. O zinco é um mineral antioxidante que previne o envelhecimento das células e é vital para função imunológica", explica. Assim, as mudanças climáticas lançam um novo desafio. As pessoas podem se alimentar adequadamente e achar que estão cuidando da saúde. Mas podem consumir alimentos com déficit nutricional e desenvolver problemas como anemia ou baixa imunidade.
Produção de alimentos
A pesquisa revela que a alimentação nos padrões atuais é responsável por até 37% das emissões de gases de efeito estufa no mundo. Sendo responsável por quase um quarto de todo o CO2 emitido no mundo, a produção de alimentos é considerada um dos principais motores das mudanças climáticas.
Michelle Jacob, coordenadora do Laboratório Horta Comunitária Nutrir da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande Norte), explica que é preciso "adotar uma abordagem multifacetada" para reduzir o impacto da produção alimentar nas emissões de gases de efeito estufa.
A pesquisadora afirma que "é preciso combinar o fim do avanço da produção agrícola sobre as florestas com a adoção de dietas de baixo impacto ambiental, reduzindo o consumo de carne, nas situações viáveis, além de incentivar a agricultura familiar e a agroecologia", detalha.