Lama até a canela e calor mortal: ir a shows pode virar experiência difícil
Ondas de calor, tempestades ou secas: eventos climáticos extremos estão cada vez mais frequentes e, para o público e profissionais do setor cultural, esse cenário tem apresentado novos desafios.
As mudanças climáticas estão transformando até mesmo os megaeventos, como shows e festivais, em experiências traumáticas. Exemplos não faltam.
Em 2023, a passagem de Taylor Swift no Rio de Janeiro foi marcada por uma forte onda de calor.
Na ocasião, a jovem Ana Clara Benevides, 23, morreu após sofrer de exaustão térmica. No dia, os termômetros ultrapassaram os 40°C. Outros fãs sofreram com queimaduras após entrar em contato com estruturas metálicas quentes.
Ainda em 2023, o Tomorrowland, em Itu (SP), teve de cancelar um dia de festival devido às fortes chuvas e aos alagamentos —situação que tende a se tornar mais frequente e grave com as mudanças climáticas.
O festival virou um lamaçal e era possível ver pessoas tentando se equilibrar, com barro até a canela.
Neste ano, a seca somada aos incêndios em São Paulo interrompeu uma rave em Altinópolis. Cerca de 60 pessoas tiveram de ser encaminhadas ao Hospital Municipal devido à inalação da fumaça.
Já um levantamento do Mapa dos Festivais mostrou que, dos 15 festivais adiados no primeiro semestre, quatro foram devido a chuvas —o Prime Rock Porto Alegre, Turá Porto Alegre, Ibitipoca Music Festival e Rap Game Festival BH.
Cultura x clima
Durante a COP 28 (Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas), no ano passado, o tema da cultura foi incorporado às mudanças climáticas pela primeira vez.
A ministra da Cultura, Margareth Menezes, falou sobre a necessidade de mobilizar o setor cultural no debate sobre o clima.
Comunidades tradicionais, culturas urbanas, patrimônios da humanidade e nacionais estão em risco com a mudança do clima. Esta ameaça pode fazer com que não possamos transmitir às novas gerações nossas práticas socioculturais, o nosso legado de memórias e de expressões culturais, o que é também um ataque ao direito à cultura de povos e comunidades e um limitante de nossa diversidade cultural.
Margareth Menezes
Segundo o observatório Copernicus, da União Europeia, o ano de 2024 pode ser o primeiro a ter um aumento da temperatura média global acima do 1,5ºC, o limite estabelecido pelo Acordo de Paris.
E isso pode significar que o tempo para shows e festivais será ainda mais imprevisível nos próximos anos, explica Laura Boeira, diretora-executiva do Instituto Veredas, organização que usa conhecimento técnico e científico para desenvolver políticas públicas.
Esse cenário pode gerar cancelamentos e danos à população que está indo aproveitar esses espaços. Podemos atingir situações muito graves de risco à vida, seja por calor extremo, por inadequada hidratação, deslizamentos ou qualquer outro dano que pode acontecer relacionado a enchentes. Temos observado isso em vários lugares do Brasil, o Rio Grande do Sul foi um grande exemplo.
Laura Boeira
O que fazer?
Não é possível prever eventos climáticos extremos ao marcar um festival. Como são organizados com muito tempo de antecedência, não há como saber com exatidão o que pode ocorrer durante um show. Por isso, é importante levantar dados previamente.
Não tem como saber com tanta antecedência se no dia do evento terá uma onda de calor. No entanto, é possível entender que existe uma probabilidade de isso acontecer em determinada época do ano. Se ela existe, cabe ao organizador preparar uma estrutura para enfrentar essa situação. Além disso, é importante evitar lugares que possam ter inundações ou deslizamentos, por exemplo.
Vanderley John, engenheiro civil e coordenador do CICS USP (Centro de Inovação em Construção Sustentável da Universidade de São Paulo)
Se as cidades estão preparadas, os grandes eventos também estarão. Mais do que a produção de um evento estar engajada com a prevenção de riscos, é necessário que as cidades forneçam infraestrutura. Assim, além do festival, o próprio espaço urbano pode dar segurança aos frequentadores em situações críticas, como uma onda de calor ou uma chuva intensa.
Faz sentido a cidade se preparar e então cabe ao evento se incorporar e somar a essas medidas de adequação ao risco. São Paulo, por exemplo, talvez esteja mais suscetível à seca e à chuva, mas há lugares, como Santa Catarina, em que há ventos muito fortes. Então é necessário preparar um mapa para entender como isso afetaria cada evento --e o que fazer, como distribuição de água, diminuição da lotação de pessoas, espaços com sombra e outras soluções.
Vanderley John
Políticas públicas não devem parar na distribuição de água gratuita. Após a morte de Ana Clara Benevides, o governo federal publicou uma portaria que obrigava grandes eventos a distribuir água até pelo menos o Natal deste ano. A ideia também virou projeto de lei —tanto em nível estadual quanto federal. Na Câmara dos Deputados, há a PL 5539/2023 e, na Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo), avança a PL 1594/2023, apelidada de 'Lei Ana Benevides'. Mas os especialistas afirmam que propostas devem ir além.
É óbvio que há de ter ações de distribuição de água, de grandes carros-pipa para hidratação. Todas essas ações têm mérito e melhoram significativamente a experiência das pessoas. Mas estamos apenas respondendo a um dano que está posto. Também devemos pensar nesse impacto mais sistêmico, que não é só da experiência individual no evento. O bom equilíbrio não é só essa resposta quando algo grave já está posto, mas tentar pensar na mitigação dos danos.
Laura Boeira
Uma oportunidade para a conscientização
Evitar desastres em festivais é também proteger o meio ambiente. Assim como o clima é determinante para práticas culturais, a cultura também tem a possibilidade de promover ações climáticas.
Se a gente concorda que tem uma urgência sobre a agenda climática, a própria cultura pode ser uma ferramenta riquíssima para trazer mais pessoas em torno desse debate e tornar isso cada vez mais uma preocupação coletiva.
Laura Boeira
Já existem exemplos de aliar pouco impacto ambiental com prevenção de danos. O relatório Cultura e Clima, realizado pela ONG C de Cultura e a agência Outra Onda Conteúdo em parceria com O Instituto Veredas, mapeou algumas iniciativas globais. Uma delas é o EcoProd, um guia para produção audiovisual cujas diretrizes também funcionariam festivais. Nele, há um checklist com sugestões de como seria uma logística sustentável para as diferentes etapas da produção cultural —desde a redução do uso de plástico até monitoramento da quantidade de voos. Outra iniciativa é o financiamento promovido pela Art's Council England, na Inglaterra. O programa coloca como requisito para concessão de dinheiro público a apresentação de relatórios sobre os impactos e adoção de medidas compensatórias.
No Brasil identificamos que já existem algumas boas práticas, como a vinculação com cooperativas de gestão de resíduos ou a conscientização do público para entender a própria pegada de carbono no evento. Mas devemos pensar em um pacto de colaboração que vai desde o setor privado, os artistas, as pessoas participantes, e as entidades governamentais, cada um com seu papel. Não tem uma solução única porque cada local e cada evento terá demandas bem específicas. Mas é importante sempre ter o maior esforço possível para romper uma lógica individualizante e integrar isso em um sistema.
Laura Boeira
A banda Coldplay, que produz grandes shows, tem levantado debate sobre o tema. Em 2019, o grupo anunciou que não sairia em turnê até descobrir como torná-las mais sustentáveis. Ao retornar às estradas, vieram algumas inovações, como plantar uma árvore a cada ingresso vendido, usar painéis solares para energia e biocombustíveis em operações logísticas. Com isso, eles anunciaram que reduziram em 59% a pegada de carbono (as emissões de gases de efeito estufa). No entanto, ativistas apontaram que empresas parceiras da banda podem estar ligadas ao "greenwashing" —uma tentativa de criar a aparência de ser ambientalmente responsável sem ser de fato.
Uma recomendação nítida é que se envolva as comunidades de fazedores de cultura e os povos e comunidades tradicionais nos conselhos que acompanham essas políticas porque são pessoas que já vêm numa tradição de preservação dos territórios, então podem contribuir com muita riqueza.
Laura Boeira