Lama até a canela e calor mortal: ir a shows pode virar experiência difícil

Ondas de calor, tempestades ou secas: eventos climáticos extremos estão cada vez mais frequentes e, para o público e profissionais do setor cultural, esse cenário tem apresentado novos desafios.

As mudanças climáticas estão transformando até mesmo os megaeventos, como shows e festivais, em experiências traumáticas. Exemplos não faltam.

Em 2023, a passagem de Taylor Swift no Rio de Janeiro foi marcada por uma forte onda de calor.

Na ocasião, a jovem Ana Clara Benevides, 23, morreu após sofrer de exaustão térmica. No dia, os termômetros ultrapassaram os 40°C. Outros fãs sofreram com queimaduras após entrar em contato com estruturas metálicas quentes.

Jovens esperam na fila do lado de fora do estádio para o show de Taylor Swift; evento foi marcado pela morte de uma fã devido ao calor
Jovens esperam na fila do lado de fora do estádio para o show de Taylor Swift; evento foi marcado pela morte de uma fã devido ao calor Imagem: REUTERS/Ricardo Moraes

Ainda em 2023, o Tomorrowland, em Itu (SP), teve de cancelar um dia de festival devido às fortes chuvas e aos alagamentos —situação que tende a se tornar mais frequente e grave com as mudanças climáticas.

O festival virou um lamaçal e era possível ver pessoas tentando se equilibrar, com barro até a canela.

Tomorrowland Brasil cancela shows após lama, chuva e perrengue
Tomorrowland Brasil cancela shows após lama, chuva e perrengue Imagem: Reprodução/Instagram

Neste ano, a seca somada aos incêndios em São Paulo interrompeu uma rave em Altinópolis. Cerca de 60 pessoas tiveram de ser encaminhadas ao Hospital Municipal devido à inalação da fumaça.

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Tendas e estruturas da rave Anacã foram destruídas
Tendas e estruturas da rave Anacã foram destruídas Imagem: Reprodução/Instagram @sumidao

Já um levantamento do Mapa dos Festivais mostrou que, dos 15 festivais adiados no primeiro semestre, quatro foram devido a chuvas —o Prime Rock Porto Alegre, Turá Porto Alegre, Ibitipoca Music Festival e Rap Game Festival BH.

Cultura x clima

Durante a COP 28 (Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas), no ano passado, o tema da cultura foi incorporado às mudanças climáticas pela primeira vez.

A ministra da Cultura, Margareth Menezes, falou sobre a necessidade de mobilizar o setor cultural no debate sobre o clima.

Comunidades tradicionais, culturas urbanas, patrimônios da humanidade e nacionais estão em risco com a mudança do clima. Esta ameaça pode fazer com que não possamos transmitir às novas gerações nossas práticas socioculturais, o nosso legado de memórias e de expressões culturais, o que é também um ataque ao direito à cultura de povos e comunidades e um limitante de nossa diversidade cultural.
Margareth Menezes

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Segundo o observatório Copernicus, da União Europeia, o ano de 2024 pode ser o primeiro a ter um aumento da temperatura média global acima do 1,5ºC, o limite estabelecido pelo Acordo de Paris.

E isso pode significar que o tempo para shows e festivais será ainda mais imprevisível nos próximos anos, explica Laura Boeira, diretora-executiva do Instituto Veredas, organização que usa conhecimento técnico e científico para desenvolver políticas públicas.

Esse cenário pode gerar cancelamentos e danos à população que está indo aproveitar esses espaços. Podemos atingir situações muito graves de risco à vida, seja por calor extremo, por inadequada hidratação, deslizamentos ou qualquer outro dano que pode acontecer relacionado a enchentes. Temos observado isso em vários lugares do Brasil, o Rio Grande do Sul foi um grande exemplo.
Laura Boeira

Casa de Cultura Mário Quintana alagada em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, após enchentes
Casa de Cultura Mário Quintana alagada em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, após enchentes Imagem: 5.mai.2024-Anselmo Cunha/AFP

O que fazer?

Não é possível prever eventos climáticos extremos ao marcar um festival. Como são organizados com muito tempo de antecedência, não há como saber com exatidão o que pode ocorrer durante um show. Por isso, é importante levantar dados previamente.

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Não tem como saber com tanta antecedência se no dia do evento terá uma onda de calor. No entanto, é possível entender que existe uma probabilidade de isso acontecer em determinada época do ano. Se ela existe, cabe ao organizador preparar uma estrutura para enfrentar essa situação. Além disso, é importante evitar lugares que possam ter inundações ou deslizamentos, por exemplo.
Vanderley John, engenheiro civil e coordenador do CICS USP (Centro de Inovação em Construção Sustentável da Universidade de São Paulo)

Lollapalooza Brasil 2024: chuva fez público andar na lama no 2º dia
Lollapalooza Brasil 2024: chuva fez público andar na lama no 2º dia Imagem: Marcelo Justo/UOL

Se as cidades estão preparadas, os grandes eventos também estarão. Mais do que a produção de um evento estar engajada com a prevenção de riscos, é necessário que as cidades forneçam infraestrutura. Assim, além do festival, o próprio espaço urbano pode dar segurança aos frequentadores em situações críticas, como uma onda de calor ou uma chuva intensa.

Faz sentido a cidade se preparar e então cabe ao evento se incorporar e somar a essas medidas de adequação ao risco. São Paulo, por exemplo, talvez esteja mais suscetível à seca e à chuva, mas há lugares, como Santa Catarina, em que há ventos muito fortes. Então é necessário preparar um mapa para entender como isso afetaria cada evento --e o que fazer, como distribuição de água, diminuição da lotação de pessoas, espaços com sombra e outras soluções.
Vanderley John

Políticas públicas não devem parar na distribuição de água gratuita. Após a morte de Ana Clara Benevides, o governo federal publicou uma portaria que obrigava grandes eventos a distribuir água até pelo menos o Natal deste ano. A ideia também virou projeto de lei —tanto em nível estadual quanto federal. Na Câmara dos Deputados, há a PL 5539/2023 e, na Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo), avança a PL 1594/2023, apelidada de 'Lei Ana Benevides'. Mas os especialistas afirmam que propostas devem ir além.

É óbvio que há de ter ações de distribuição de água, de grandes carros-pipa para hidratação. Todas essas ações têm mérito e melhoram significativamente a experiência das pessoas. Mas estamos apenas respondendo a um dano que está posto. Também devemos pensar nesse impacto mais sistêmico, que não é só da experiência individual no evento. O bom equilíbrio não é só essa resposta quando algo grave já está posto, mas tentar pensar na mitigação dos danos.
Laura Boeira

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Uma oportunidade para a conscientização

Evitar desastres em festivais é também proteger o meio ambiente. Assim como o clima é determinante para práticas culturais, a cultura também tem a possibilidade de promover ações climáticas.

Se a gente concorda que tem uma urgência sobre a agenda climática, a própria cultura pode ser uma ferramenta riquíssima para trazer mais pessoas em torno desse debate e tornar isso cada vez mais uma preocupação coletiva.
Laura Boeira

Já existem exemplos de aliar pouco impacto ambiental com prevenção de danos. O relatório Cultura e Clima, realizado pela ONG C de Cultura e a agência Outra Onda Conteúdo em parceria com O Instituto Veredas, mapeou algumas iniciativas globais. Uma delas é o EcoProd, um guia para produção audiovisual cujas diretrizes também funcionariam festivais. Nele, há um checklist com sugestões de como seria uma logística sustentável para as diferentes etapas da produção cultural —desde a redução do uso de plástico até monitoramento da quantidade de voos. Outra iniciativa é o financiamento promovido pela Art's Council England, na Inglaterra. O programa coloca como requisito para concessão de dinheiro público a apresentação de relatórios sobre os impactos e adoção de medidas compensatórias.

No Brasil identificamos que já existem algumas boas práticas, como a vinculação com cooperativas de gestão de resíduos ou a conscientização do público para entender a própria pegada de carbono no evento. Mas devemos pensar em um pacto de colaboração que vai desde o setor privado, os artistas, as pessoas participantes, e as entidades governamentais, cada um com seu papel. Não tem uma solução única porque cada local e cada evento terá demandas bem específicas. Mas é importante sempre ter o maior esforço possível para romper uma lógica individualizante e integrar isso em um sistema.
Laura Boeira

Coldplay durante show em 2022
Coldplay durante show em 2022 Imagem: Zô Guimarães/UOL
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A banda Coldplay, que produz grandes shows, tem levantado debate sobre o tema. Em 2019, o grupo anunciou que não sairia em turnê até descobrir como torná-las mais sustentáveis. Ao retornar às estradas, vieram algumas inovações, como plantar uma árvore a cada ingresso vendido, usar painéis solares para energia e biocombustíveis em operações logísticas. Com isso, eles anunciaram que reduziram em 59% a pegada de carbono (as emissões de gases de efeito estufa). No entanto, ativistas apontaram que empresas parceiras da banda podem estar ligadas ao "greenwashing" —uma tentativa de criar a aparência de ser ambientalmente responsável sem ser de fato.

Uma recomendação nítida é que se envolva as comunidades de fazedores de cultura e os povos e comunidades tradicionais nos conselhos que acompanham essas políticas porque são pessoas que já vêm numa tradição de preservação dos territórios, então podem contribuir com muita riqueza.
Laura Boeira

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