Agro deveria ser o mais preocupado com o clima, diz cientista perseguida
Julia Trevisan
Colaboração para Ecoa, em São Paulo
09/12/2024 05h30
Para Luciana Gatti, coordenadora do laboratório de gases de efeito estufa do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) e uma das principais cientistas brasileiras, o agronegócio deveria ser o primeiro interessado em entender as questões climáticas.
"O que vai ser do agro com secas severas, com mais eventos extremos que destroem completamente as produções? Estamos entrando em um cenário de muito mais prejuízo", disse em entrevista para Ecoa.
Em setembro, Gatti virou alvo de ataques do setor durante os incêndios em São Paulo por mencionar a prática antiga de usar fogo para limpar os canaviais antes da colheita. Ela também criticou a decisão do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, de indenizar proprietários antes de as investigações serem finalizadas.
Quem acha que a gente está falando contra a agricultura é por ignorância. Porque a agricultura é a primeira a falir. Luciana Gatti
Não foi a primeira vez que Luciana virou notícia. Em 2021, ela foi a principal autora de um artigo científico publicado na revista Nature sobre as emissões de CO2 na Amazônia. Sua pesquisa revelou que a Amazônia já emite mais carbono do que absorve, ameaçando seu papel de sumidouro de carbono essencial para o equilíbrio climático global.
Para a cientista, o que o governo deveria fazer é possibilitar o diálogo entre ciência e empresários do agro para uma agricultura sustentável. "Eu não estou falando nem do ponto de vista da emissão, mas de manter a produção de alimentos nessa situação de mudanças climáticas - já passou da hora de termos essa conversa."
Luciana acredita que precisamos de um plano de sobrevivência envolvendo desmatamento zero, restauração florestal acima do exigido pelo código florestal e redução do rebanho bovino. "Se não entendermos o que estamos fazendo de errado, não teremos chance", disse a pesquisadora para a plateia do TEDx Amazônia, em Manaus, no dia 1º, quando foi ovacionada. "O gado criado na Amazônia deveria ser exclusivamente para consumo na Amazônia", diz a cientista, que parou de comer carne vermelha quando entendeu o impacto da pecuária na devastação do bioma.
Leia a seguir a entrevista, concedida em novembro e editada para ficar mais concisa.
Foi a primeira vez que a senhora passou por uma situação como a ocorrida em setembro [em que foi alvo de ataques de setores do agronegócio por alertar sobre incêndios e desmatamento]?
Durante o governo Bolsonaro eu era assediada indiretamente. Quem era diretamente assediado era o meu diretor [Clezio de Nardin]. Eles queriam que eu parasse de dar entrevistas [sobre a pesquisa de 2021], e as ameaças eram de exonerar o diretor e deixar de dar dinheiro para o Inpe, colocando em risco até o pagamento da conta de luz do instituto. No final, queriam que me transferissem para um instituto na Caatinga.
Mas o que a senhora falava que incomodava tanto?
O resultado das pesquisas, mostrando que o desmatamento está reduzindo a chuva, aumentando a temperatura e aumentando as emissões de carbono da Amazônia.
O fato de ser mulher pesou nos ataques?
Com certeza. Ninguém ataca um homem cientista. É uma característica de atacar quem eles acham que é indefeso.
O que mudou na sua rotina desde então?
Eu fechei minha rede social para evitar ataques. E ganhei muitas oportunidades de falar sobre meu trabalho, num momento em que vemos a aceleração dos eventos extremos.
A comunidade científica organizou uma moção de apoio e solidariedade. A moção de apoio, assinada por Antonio Donato, Carlos Nobre e Ricardo Galvão, diz: "Os cidadãos brasileiros e de todo o mundo precisam dar um basta a um modelo econômico que não produz alimentos, mas commodities agrícolas infestadas de agrotóxicos proibidos nos países que os fabricam e que estão cada vez mais envenenando o povo brasileiro. Precisamos de uma lei proibindo totalmente o uso de fogo na agropecuária brasileira. Precisamos dar um basta à destruição da natureza, de que somos todos dependentes e parte integrante". Como deveria ser esse novo modelo viável?
Primeiro quero retomar uma constatação da minha pesquisa. O desmatamento está criando uma estação seca lá no Amazônia, inverno aqui [no Sudeste]. Mas o Brasil inteiro seca nessa época, em agosto, setembro, outubro. A vegetação fica mais inflamável. Isso está acontecendo há 40 anos, principalmente nos últimos 20 anos. Se a vegetação está cada vez mais seca, a gente tem que parar de usar o fogo no manejo. Tem que ser terminantemente proibido. É preciso estudar os casos onde o fogo realmente é necessário e mudá-lo de época. Para, por exemplo, junho e julho, quando a vegetação ainda não está tão seca.
Isso porque, com a floresta superseca, ela fica mais inflamável e o fogo se espalha. A floresta amazônica não é como o cerrado, onde a árvore tem um caule grosso que a protege do fogo - depois da queimada, ela rebrota, fica verde, cria folhas. Na Amazônia isso não acontece. A floresta morre com o fogo. As árvores vão caindo, vão se decompondo por décadas, e a vegetação que nasce é uma vegetação completamente diferente, de baixa densidade. Uma espécie magrelinha de caule oco que mal tem galho, só tem folha. No satélite está verde, mas é outra floresta.
E é isso que vai acontecer. Uma capacidade de absorver carbono muito menor, com carbono estocado muito menor. Na prática, está havendo uma degradação muito grande da floresta amazônica.
Então, se a gente sabe que vai ter um agosto, setembro, outubro cada vez mais seco, mais quente, com a floresta mais inflamável, a gente tem que ter políticas muito mais agressivas de proibição do fogo. Não adianta dobrar multa para quem é criminoso. Os caras não pagam.
Se a gente não tiver um Plano Safra só para quem não desmatou nos últimos dez anos, o governo vai estar financiando a destruição do meio ambiente da floresta. Tem que ter políticas concretas. Se ateou fogo e ele se estendeu, tem que perder a propriedade. O cara não pode conseguir empréstimo, comercializar, vender. Vai fazer outra coisa da vida, cara. Você não tem direito de lidar com a terra. Tem que tirar a terra porque a terra está ficando na mão de pouquíssimos, enormes latifundiários, enquanto temos um monte de gente precisando de terra.
Então, assim, hoje a gente discute esse modelo e pensa em alternativas, mas dentro do governo tem uma queda de braço. O governo leva o meio ambiente para um lado, mas os ministérios da Agricultura e de Minas e Energia, para o lado oposto.
E como seria esse "novo modelo"?
Bom, em primeiro lugar, a gente tem que ter desmatamento zero já e restauração florestal. A gente precisa efetivamente reduzir o rebanho bovino e reduzir a área de monocultura e substituir com agrofloresta, com reparação de área degradada. Porque é o seguinte: a gente perdeu uma quantidade de vegetação enorme a partir de 2019. Começamos a perder antes. Só que o Bolsonaro dobrou por ano. Passamos quatro anos lá nas alturas de desmatamento, e isso desequilibrou o clima no Brasil. Até 2018 havia, em média, 60, 70 mortes por eventos extremos do Brasil. Em 2019, foram contabilizadas 24 árvores cortadas por segundo no Brasil inteiro. Você imagina o desequilíbrio que isso causou no clima? As mortes foram para 300. Saíram de 60 e foram para 300. No último ano do Bolsonaro estavam em 500. Por quê? Porque a árvore é como um climatizador.
A árvore pega a água líquida que está no solo, pelas raízes, e joga na atmosfera, na forma de vapor. A água, para sair do estado líquido e ir para o vapor, ela precisa receber energia na forma de calor. Da mesma forma que a gente põe a água no fogo para ela ferver. Você tem que dar energia na forma de calor para ela. Então, quando a árvore está fazendo isso, ela está absorvendo essa energia do infravermelho na forma de calor naquele ambiente onde ela está. Por isso que, quando você está num parque, num bosque, numa fazenda, é muito mais fresco. Porque as árvores estão o tempo inteiro consumindo a energia na forma do calor, jogando umidade para a atmosfera. Quando você tira 24 árvores por segundo durante um ano, o que acontece com esse país? Lembra de 2019? A gente teve uma tempestade que só ocorre em deserto no interior do estado de São Paulo. Tudo está conectado. E a gente está desequilibrando o clima no Brasil e acelerando isso. Temos que pensar numa solução que aumente a área vegetal.
Se a gente parar agora, se a gente fizer desmatamento zero no Brasil inteiro hoje, vai resolver o problema? Não vai. Só acha que vai quem pensa que o único problema são as emissões de gases de efeito estufa. Mas o problema não é só isso. O problema é que a natureza participa do controle climático. Esse desequilíbrio de perder a vegetação está tornando a superfície mais quente. E, com isso, mais moléculas de água têm energia para sair do estado líquido para o vapor. Tem mais vapor de água na atmosfera e, na hora que chove, cai mais água.
Você vê, eu sou especialista em gás de efeito estufa e eu estou falando de tudo menos de gás de efeito estufa. Porque hoje, sinceramente, eu acho que não é o pior. Não para nós. Não pensando em desmatamento. A perda da vegetação causa um dano muito maior do que as emissões de gases de efeito estufa pelo desmatamento. E a gente não está levando isso em consideração. Só que aí se soma. As emissões do petróleo estão aumentando, as emissões na agricultura estão aumentando porque o rebanho bovino brasileiro está aumentando e ele é o maior fator de desmatamento, de incêndios, de queimadas. A gente está num cenário de catástrofe.
Se nada mudar, o próprio agro não sofre consequências?
Então, essa é uma parte muito importante de a gente conversar. Porque o agro deveria ser o primeiro a estar interessado em entender sobre o controle do clima.
Porque essa política de desmatar coloca a existência do agro em risco. O que vai ser do agro com secas severas, com mais eventos extremos que destroem completamente as produções? A gente está entrando num cenário de muito mais prejuízo. O Ministério da Agricultura deveria estar junto com o Ministério do Meio Ambiente para construir uma solução. O agro precisa de um equilíbrio climático maior, precisa de chuva. A gente tinha que estar restaurando o ambiente.
Ainda é possível ter esse diálogo entre governo, ciência e agro?
O governo poderia possibilitar esse diálogo, trazer todos esses representantes desse setor para conversar e chamar a ciência, o pessoal mais ligado à agricultura, a ciência climática, os técnicos, e conversar para pensar numa agricultura sustentável.
O que é sustentável? Eu não estou falando do ponto de vista nem da emissão. Eu estou falando de pensar num plano de como manter a produção de alimento nessa situação de mudança climática, que vai cada vez tornar a produção agrícola mais difícil. Já passou da hora de termos essa conversa. A gente tem que desenvolver soluções. Para mim, uma solução rápida passa por conversar com quem compra a maioria dessa soja e dizer: "Olha, nós queremos trazer as fábricas de ração animal para cá." Porque quando você vende a sua matéria-prima com valor agregado, você precisa de uma produção muito menor para fazer o mesmo lucro. Ou mais superior. E ainda gera emprego, distribui renda. Então, o governo poderia estar intermediando conversas com a China, que é o principal comprador da soja, para trazer para o Brasil as fábricas de ração. Eles vão ter o mesmo lucro.
Agora a gente está num projeto de Brasil caminhando para o caos. E aí, como é que nós vamos sobreviver? Eu chamo de plano de sobrevivência. Não só econômico. Se você pensar na vida, onda de calor é o que mais mata. A gente precisa urgentemente de uma onda de reflorestamento, de plantio de árvores nas cidades, a gente precisa reduzir a temperatura da superfície. Por que nós não estamos falando dessas coisas?
Em sua nota técnica, a senhora afirma que é preciso "somarmos forças para descobrirmos juntos como sobreviver em um Brasil, um planeta cada vez mais inóspito, devido às agressões cometidas contra o meio ambiente, contra a natureza". Que caminhos a ciência aponta?
Desmatamento zero, projeto de reflorestamento em larga escala. A gente tinha que estar fazendo campanha de plantar árvores, as escolas poderiam ser envolvidas, a gente precisava estar mobilizando toda a sociedade pra isso. E não estamos. Quem acha que a gente está falando contra a agricultura é por ignorância. Porque a agricultura é a primeira a falir.
Como a senhora vê as COPs?
Eu não tenho esperança nenhuma. Nem para a do Brasil. Porque efetivamente qual é o saldo que a gente tem das COPs? Algum país cumpre os acordos feitos nas COPs? É uma mobilização gigantesca, completamente inútil, altamente frustrante.
* Colaborou Patrícia Junqueira, de Ecoa, que acompanhou a palestra de Luciana Gatti em Manaus a convite do TEDx Amazônia