O dia em que pedi para Mike Tyson me dar um soco
Assim que nos viu, o repórter-fotográfico André Porto veio correndo em nossa direção. Mike Tyson e eu estávamos no lobby do luxuoso hotel localizado na região da Oscar Freire, onde o ex-campeão dos pesados hospedou-se durante a sua breve, e tumultuada, estadia em São Paulo, em 2015. O fotógrafo achou estranho e se perguntou o que estávamos fazendo, parados, um de frente do outro, punhos levantados.
"Eles estão posando...", Porto pensou consigo mesmo, até perceber que não havia ninguém posicionado para bater a tal foto. "O que estão fazendo??!..." Ele viu Tyson ameaçando desferir um golpe de direita, de cima para baixo, e seu colega de reportagem [eu, no caso] ensaiar fazer uma esquiva [movimento com perna e cintura para evitar um soco].
Foi só então que passou pela cabeça do fotógrafo que naquela noite, talvez, tivesse como tarefa adicional carregar seu colega para fora do hotel. E pensou: "o que vai acontecer agora?"
O dia havia sido uma montanha russa de emoções até chegar aquele ponto. Começou com um plantão ao lado de dezenas de jornalistas no lobby do hotel, o alarme de que Tyson estava saindo de carro para um passeio e um comboio de veículos de reportagem o seguiu. Meu carro logo foi uma baixa no comboio, pois o fotógrafo que me acompanhava (e que posteriormente foi rendido por Porto) informou que sua máquina estava sem bateria e que teria que buscar uma extra no hotel.
Retornamos. Frustrado, me resignei a esperar pela volta de Tyson. Para minha surpresa, momentos depois, o próprio Tyson surgiu no lobby do hotel. Sua "escapada" havia sido um alarme falso. Ele me perguntou se eu era o amigo de Mario Costa, português cujo bar (White Mana) Tyson frequentava em New Jersey, nos EUA, e para quem havia pedido que intermediasse entrevista com o astro.
Ao ouvir a resposta afirmativa, Tyson se desarmou e concordou em conversar. Munido do "salvo conduto" concedido pelo português, que ganharia notoriedade anos depois por participar de um reality show de corrida de pombos ao lado do próprio Tyson, já o fui inquirindo logo ao entrar no elevador.
"Você é uma figura pública, não pode sair ameaçando ou agredindo os outros", disparei [eu mesmo fora alvo de duas ameaças nos dias anteriores]. Me referia também ao fato de ele ter agredido um cinegrafista dentro de uma famosa casa noturna em São Paulo. "Isso é besteira", resmungou Tyson, que alertou não querer falar de boxe.
A princípio, achei uma droga a limitação da "pauta", mas nos 40 minutos que se seguiram, Tyson revelou, surpreendentemente, um lado introspectivo e muito franco ao discutir questões bem pessoais. Falou sobre ter sido vítima de bullying e revelou que, durante a infância, chegara a usar óculos, que eram tomados pelos garotos maiores e atirados ao chão (Tyson repetiu esse relato, anos depois, em sua autobiografia "The Undisputed Truth"). Ou seja, se tornar um valentão, brigador de rua, e por fim um delinquente, foi uma condição para sobreviver nas ruas. Nada que justifique os atos que o levaram ao instituto correcional Tryon, mas o relato ajuda a entender como se tornou a versão famosa do temido Tyson.
Ele também falou sobre seu amargor pelo fato de, apesar de ter tido cinturões, dinheiro, fama e mulheres, serem tipos "como você" [com estudo e diploma] que tiravam vantagem dele e que, ao pensar no futuro, sobre o que o esperava, via miséria, mesmo destino da maioria dos campeões dos pesados, e a morte.
Em meio a seu pessimismo, apontei para suas responsabilidades como ídolo. "Quando um ídolo perde, não no ringue, mas na vida, muitos perdem."
"Bobagem, eu não sou ídolo nenhum", resmungou Mike como resposta.
Passei os próximos minutos dando uma "dura" em Tyson. Invoquei toda uma geração que calçou as luvas de boxe pela primeira vez na década de 80 inspirada nele. E apontei que cada vez que algo de trágico acontece na vida de um ídolo esportivo, há uma comoção por causa da identificação, que certamente inclui não só atletas, mas trabalhadores, empresários, e muitos outros, que se inspiraram, em momentos difíceis, na história do jovem interno de um reformatório penal que conquistou os ringues do mundo todo.
O que se seguiu foi o momento mais revelador de todos naqueles 40 minutos. Cabeça levemente abaixada, olhos marejados, voz embargada, Tyson me interrompeu e ordenou: "Vá embora, agora!". E acrescentou, "e, se contar isso [que ficou fortemente emocionado] para alguém, acabo com você".
Saí da entrevista convencido de que naquele ponto, Tyson não era mais o "bad boy" pintado por todos. Algo imaturo, sim, mas bem diferente da época em que foi um interno de reformatório ou o campeão arrogante.
Ao agradecer Mario Costa pela ajuda, confessei estar pensando em publicar o desfecho da entrevista; o português ficou bravo, disse que eu estaria expondo Tyson e que seria um "desrespeito" divulgar que o ex-campeão mundial dos pesos-pesados havia ficado fortemente emocionado.
Foi o dilema no dia seguinte, mas no fim, decidi que era importante mostrar esse lado humano, pouquíssimo conhecido, no qual "Iron" Mike deixou o personagem. Ao ler a reportagem, que lhe encaminhei posteriormente, elogiou o resultado final. Não foi "sensacionalista" como achou que seria.
Ah, sim, mas o soco, e o soco?
Após a entrevista, enquanto esperava um táxi, no lobby do hotel, avistei Mike, que se preparava, agora, sim, para dar sua rotineira "escapada" noturna. O chamei e pedi para que tentasse me dar um soco. Ele me fitou como se eu estivesse louco. Eu, que competira brevemente como boxeador amador, inspirado justamente em Tyson, tentaria me esquivar, expliquei. Não seria a mesma situação de um jornalista que décadas atrás pediu ao campeão dos pesados Jack Dempsey, para que lhe golpeasse no queixo.
Tyson estava fora de forma, literalmente pesado, com barriga, e eu era muito mais leve que ele e, teoricamente, mais ágil. E, se o golpe pegasse, bem, já havia sofrido knockdown [queda] na academia para gente bem menos conhecida que ele. Não importava o ângulo, para quem acompanha, escreve sobre boxe, ou teve Tyson como inspiração para treinar e subir no ringue para competir, aquela era uma oportunidade única.
Mike armou o golpe, ameaçou desferir, mas no fim desarmou a guarda, balançou a cabeça a cabeça num gesto de "não", foi seu jeito de dizer que se o golpe acertasse, aquele seria meu fim.
Aquela para mim foi a conclusão de uma poderosa combinação de um-dois [no boxe, jab preparatório-direto potente], que começou quando Tyson "saiu" do personagem ao revelar uma certa fragilidade e depois ao demonstrar consideração para com um desconhecido. Logo ele que tinha fama de gostar de machucar as pessoas.
Epílogo
É um sentimento agradável ver que Tyson errou sua previsão. Não ficou na miséria, tampouco morreu prematuramente. Ele escreveu a autobiografia "Undisputed Truth", base para uma aclamada peça da Broadway, dirigida por Spike Lee e, posteriormente, adaptada para a TV. O ex-campeão também estrelou um reality show, se tornou um youtuber e se mantém querido e relevante, como prova o interesse por sua luta-exibição com Roy Jones Jr, marcada para o próximo sábado (28).
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