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Brasileiro campeão mundial treina mais que todos e se satisfaz até na dor

Henrique Avancini é campeão mundial de ciclismo MTB no cross-country maratona - Divulgação Red Bull
Henrique Avancini é campeão mundial de ciclismo MTB no cross-country maratona Imagem: Divulgação Red Bull

Luiza Oliveira

Do UOL, em São Paulo

06/10/2018 04h00

Henrique Avancini nunca se achou muito talentoso em cima da bicicleta. E até ouviu de pessoas importantes do ciclismo que deveria repensar a sua carreira. Mas isso nunca foi impeditivo e ele criou forças para vencer essa barreira. O ciclista é o atual campeão mundial de mountain bike no cross-country maratona e alcançou um lugar entre os tops do mundo depois de tomar uma decisão forte e passar por um longo processo: treinar mais que os seus adversários, fazer um grande trabalho mental e aprender até a sentir satisfação com a dor.

Avancini sabe como poucos no esporte como usar o seu corpo a favor e, principalmente, o poder da mente. Foi assim que o atleta de Petrópolis-RJ percorreu os 102 km de uma prova em pouco mais de 5h, superou todos os seus adversários e se tornou campeão mundial no último mês na Itália. Agora, se prepara para os Jogos Olímpicos de Tóquio como um dos grandes candidatos a conseguir uma medalha no cross-country olímpico, categoria na qual ocupa o segundo lugar do ranking.

A missão era árdua. Não é fácil um sul-americano brigar de igual para igual com europeus, que já têm uma escola de ciclismo desenvolvida, uma mentalidade própria do esporte, gerações de campeões e técnicos que sabem exatamente o caminho para se chegar lá. Por isso, cabia a ele fazer mais que todos os outros. Mas o estalo não rolou da noite para o dia. O caminho foi traçado ao longo de 8 anos, entre erros e acertos.

“Construir essa capacidade demorou muito tempo, esse foi o período mais difícil. Trabalhei muito mais que qualquer outro atleta, sem ter certeza que isso faria sentido. Até transformar o trabalho a mais em performance foram alguns anos, tentando novas ferramentas, distribuição de carga. Foram algumas lesões pelo caminho, alguns erros que cometi por trabalhar demais. Mas desenvolvi a capacidade de absorver esse treinamento. O atleta de alto rendimento trabalha muito próximo do limite. Eu comecei a não querer trabalhar no limite, mas a expandir o limite. Pensei: ‘onde vou expandir, onde vou investir? Porque preciso ser capaz de treinar, de trabalhar de forma mais profunda’.  A pouca capacidade natural que eu tinha, eu desenvolvi ao máximo, extraí muito do pouco que eu tinha a oferecer”, conta.

Hoje, Avancini vem colhendo os resultados. Teve uma ascensão fora da curva nas últimas temporadas e é o único top 10 do ranking mundial que nunca tinha sido medalhista ou que não tenha ‘pedigree’ no esporte. Vive o melhor momento da carreira. Mas um passo fundamental foi usar a sua força mental. Nesse processo, ele aprendeu a lidar com a dor e a até sentir prazer nela.

"A dor faz parte da nossa vida como um todo. É difícil entender as diferenças de dores. Tem dores que nos destroem e dores que nos constroem. O atleta está sempre muito em contato com ambas. Quando você aprende a lidar com a dor que constrói é a coisa mais legal que tem na vida. É um sofrimento que você entende porque você vê o resultado acontecendo. Eu curto muito. Para mim o que é maçante é a dor de lesão, quando sofro queda ou algo do tipo".

“A dor que constrói é um outro tipo de dor, muito pelo que representa, não que seja agradável. Mas é um sofrimento consciente, eu trabalho muito de uma maneira em que eu construo o sofrimento. Dentro dos blocos de preparação, o jeito que eu trabalho é preparando meu corpo para consegui sofrer mais tendo a sensação de estar sofrendo menos. É um jogo que você joga com você mesmo que é muito legal. E mountain bike é um esporte que você nunca domina. É difícil voltar para casa sem alguma lição, essa construção de performance para mim é muito poderosa. O grande desafio das pessoas que trabalham comigo é me fazer desacelerar, saber usar o freio de mão”.

Desde 2015, o atleta faz um trabalho com uma psicóloga do COB que ajudou bastante na sua performance. Não só pelo acompanhamento psicológico, mas porque a terapia também o ajuda a desenvolver sua capacidade psicomotora, sua percepção visual e ativações mentais para melhorar o seu reflexo fisiológico.

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O ‘não’ que mudou sua vida

O trabalho foi árduo para alcançar os resultados. E tem um episódio que representa muito isso. Em meados de 2010, ele fazia seu início profissional na Europa e tinha dificuldade de se destacar no velho continente. Fazia algumas boas provas, mas ele mesmo se considerava mediano. Até que o gerente da equipe o dispensou e disse que ele deveria repensar se o ciclismo seria mesmo a sua carreira.

 “A atitude dele me marcou bastante. Eu estava no Brasil às vésperas de viajar. E ele falou que não me mandaria a passagem porque não precisava de mim porque eu não vinha desempenhando bem: ‘olha, sinceramente eu não preciso de você para o ano que vem. Acho que você deveria repensar a sua carreira. Aos meus olhos, você não tem o que é necessário para competir bem na Europa’. Isso me fez refletir muito. A partir desse momento eu aceitei essa condição, não que tenha aceitado a visão dele, mas consegui enxergar que naquele momento eu não tinha o que era necessário para competir em nível mundial. Foi quando eu percebi que eu tinha que trabalhar de um jeito diferente, para ter algo que aqueles caras não teriam”.

Durante essa jornada, Avancini passou muitos altos e baixos e sentou no meio fio desolado muitas vezes. Nas Olimpíadas do Rio de 2016 teve um grande baque. Sofreu duas lesões, entre elas uma na coluna, e conseguiu um 23º lugar, bem abaixo das suas expectativas. Mas teve talvez a maior lição da sua carreira.

O título mundial e a preparação para Tóquio

Agora na disputa do título mundial, ele usou todo o histórico a seu favor e ainda traçou uma estratégia diferente de todos os adversários. Competiu com uma bicicleta mais pesada com amortecedor dianteiro e traseiro, enquanto a maioria dos atletas usou apenas amortecedor dianteiro, e conseguiu induzir o pelotão a andar mais próximo do seu estilo de competição. O esforço deu certo e ele foi campeão.

“Foi um dos esforços mais profundos da minha carreira. É considerada a prova mais dura de todos os tempos, tiveram alguns campeões mundiais entrando em colapso, dá para ver o quão brutal foi o esforço. Mas estou em um momento muito bom da temporada, eu tinha a oportunidade de dar o título de presente para o mountain bike e para o ciclismo. Isso me motivou muito”.

Agora, já pensa em Tóquio na categoria cross-country olímpico. “Sou um candidato claro a medalha, mas ainda tenho muito a desenvolver. É uma modalidade que não dá para apontar com certeza, é muito variável, só tem uma chance, é só uma prova. Obviamente muita coisa pode acontecer a meu favor e contra mim, mas é meu grande objetivo".