Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Derrota na estreia mostra que margem de erro dos EUA é cada vez menor
A última vez que a seleção de basquete masculino dos Estados Unidos tinha perdido nas Olimpíadas foi nos Jogos de Atenas, em 2004. Na ocasião, os EUA foram surpreendidos nas semifinais pela Argentina de Luis Scola e Manu Ginobili apesar de uma seleção que tinha LeBron James, Carmelo Anthony, Tim Duncan, Dwyane Wade, Allen Iverson e mais uma série de grandes astros.
No dia seguinte, os EUA venceram a Lituânia na disputa pelo bronze para iniciar uma incrível sequência de 25 vitórias consecutivas nos Jogos Olímpicos. Foram medalhas de ouro invictas em 2008 (o chamado "Redeem Team", ou Time da Redenção após a derrota de 2004), 2012 e 2016, confirmando a supremacia norte-americana no esporte. Mas essa sequência histórica de vitórias finalmente chegou ao fim logo na primeira rodada do basquete masculino em Tóquio, com os Estados Unidos caindo perante a França, por 83 a 76.
Preocupações com essa versão da seleção americana já vinham sendo levantadas faz algum tempo, em especial após uma decepcionante sequência de amistosos preparatórios na qual os EUA perderam dois amistosos consecutivos pela primeira vez na sua história. E, embora na época alguns fatores atenuantes precisassem ser levados em conta - em especial o fato de que eram apenas amistosos e que os EUA estavam sem três jogadores importantes - essas derrotas também expuseram algumas fragilidades sobre a montagem desse elenco que não iriam embora tão cedo.
A verdade é que, quando falamos de basquete FIBA, a falta de entrosamento e as diferenças de regras e estilos em relação à NBA fazem com que os Estados Unidos já entre em relativa desvantagem em relação ao resto do mundo - uma desvantagem que, historicamente, eles compensam com sobras na base do puro talento. Mas, conforme o resto do mundo fica cada vez melhor e os EUA encontram mais dificuldades em enviar seus melhores atletas para a seleção, essa diferença de talento tem caído cada vez mais com o tempo, e não ajuda que os EUA precisaram ainda cortar às pressas dois jogadores (Bradley Beal por covid-19, Kevin Love por lesão) e convocar substitutos muito inferiores em qualidade. Com isso, as margens de erro dos EUA estão cada vez menores.
Então, embora seja uma zebra, não é realmente uma grande surpresa ver os Estados Unidos perdendo para um excelente time da França que chega em Tóquio como forte candidato a medalha. E, dentro de quadra, ficou claro que foram exatamente os fatores já conhecidos e temidos que levaram a esse resultado, com um time extremamente talentoso mas que não sabe as melhores formas de maximizar sua qualidade enfrentando um time mais sólido, consistente, experiente e que sabe exatamente o que fazer com as regras FIBA que vigoram nas Olimpíadas.
Você pode ver essa discrepância nas pequenas coisas. Na FIBA, por exemplo, não há a regra dos três segundos defensivos, que impede um defensor de ficar parado dentro do garrafão protegendo o aro - o que significa que Rudy Gobert, atual Defensor do Ano na NBA, pode ficar plantado embaixo da cesta com seus braços gigantes para impedir que os americanos consigam infiltrar para bandejas e cestas fáceis. Só que na FIBA você não pode castigar isso como faria na NBA -espaçando cinco jogadores no perímetro e obrigando Gobert a defender algum jogador longe da cesta, tirando sua proteção de aro ou cedendo chutes livres (que foi exatamente como os Clippers eliminaram o Jazz de Gobert nos playoffs da NBA). A quadra é menor, a linha dos três pontos mais próxima, o que tira em muito o espaçamento no perímetro e facilita demais para a França defender dois jogadores de uma vez para permitir a Gobert continuar no garrafão.
Bater esse tipo de defesa com o menor espaçamento FIBA não é simples; você precisa infiltrar, rodar a bola, movimentar seus jogadores em ações contínuas para conseguir aos poucos ir abrindo a defesa até conseguir seus chutes. É uma ação muito mais coletiva, diferente do que se costuma fazer na NBA (não que na NBA não tenha ações coletivas, é claro, mas o jogo é mais baseado em grandes quebra individuais para iniciar as jogadas), e era visível que os jogadores dos EUA não tinham ideia do que deveriam fazer ou como atuar para quebrar essa situação. Em geral, eles recorreram ou a um excesso de jogadas individuais - que são muito menos eficientes com o espaçamento mais congestionado da FIBA, e geram muitos chutes contestados e de baixo aproveitamento - ou então a um excesso de passes sem propósito nem resultado, rodando a bola sem abrir nenhuma vantagem com isso, que acabava forçando novamente as jogadas individuais com o cronômetro chegando ao fim. Não à toa, os melhores momentos dos EUA vieram quando sua defesa apertada, forçava erros dos franceses e permitia aos americanos saírem em velocidade no contra-ataque, pegando a quadra mais aberta e a defesa francesa desmontada, e é quando a superioridade de talento dos americanos se fazia valer.
E talvez uma melhor ilustração ainda dessa diferença entre os dois tipos de basquete seja olhar para quem foi o jogador francês mais responsável por destruir os Estados Unidos nessa partida: Evan Fournier, cestinha do jogo com 28 pontos, 10 a mais do que qualquer americano e 16 a mais que qualquer titular dos EUA. Se você fosse fazer uma lista dos melhores jogadores de NBA em quadra, Fournier estaria depois de pelo menos 9 dos 12 atletas norte-americanos, mas na FIBA ele foi quem dominou a partida e decidiu o jogo para os franceses.
Eu escrevi em outra coluna um pouco sobre esses jogadores como Fournier, Patty Mills e Tomas Satoransky, que são coadjuvantes na NBA mas de repente se tornam superestrelas no basquete de seleções, e isso não acontece por questões apenas de talento; ninguém acha que Fournier é um pontuador melhor que nomes como Kevin Durant, Jayson Tatum, Devin Booker, Damian Lillard ou Zach LaVine, mas na seleção ele consegue ser até mais eficiente que esses craques por saber melhor o que fazer: como se movimentar para receber a bola com mais espaço (e um time que sabe melhor dar a bola para ele nesses momentos), como chegar nos seus lugares favoritos, quais partes da quadra tendem a ficar mais abertas, e como aproveitar seu jogo baseado nos arremessos no menor espaçamento da FIBA. Ele não é um jogador melhor, mas ele consegue aproveitar melhor suas habilidades pela familiaridade com esse tipo de jogo tão diferente da NBA.
E, de novo, isso não é uma novidade para os EUA; essa desvantagem sempre existiu, e os EUA sempre tiveram que lidar. A questão é se os EUA continuam tendo uma vantagem técnica grande o suficiente para compensar isso com sobras, como no passado, especialmente tão desfalcado de jogadores importantes. E, tendo perdido três dos últimos quatro jogos (contando os amistosos), cada vez mais a resposta parece ser que não.
A boa notícia para os EUA é que essa derrota deve ser totalmente inconsequente; o seu grupo é de longe o mais fraco das Olimpíadas, com Irã e República Tcheca além dos franceses, duas seleções que os EUA devem conseguir vencer sem problemas. Além disso, nas Olimpíadas não só os dois primeiros colocados de cada grupo se classificam, mas também os dois melhores terceiros colocados. Em outras palavras, os EUA ainda devem conseguir classificar de fase sem nenhum problema, e uma vez chegando no mata-mata tudo volta para uma condição de igualdade.
De certa forma, eu até acho que é bom para os EUA perderem esse jogo, e serem forçados logo cedo a se confrontarem com as próprias limitações - ainda mais tendo dois jogos relativamente fáceis na fase de grupo para botar a casa em ordem antes do mata-mata. Mas a derrota não foi por acaso, e quanto mais fragilidade a seleção dos EUA mostra, mais a disputa pelo ouro no basquete masculino parece estar em aberto de uma forma como não vemos desde 2004.
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