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Vitor: Gigante, Gregg Popovich se torna técnico com mais vitórias na NBA

Gregg Popovich, treinador do San Antonio Spurs é celebrado após bater o recorde de vitórias na NBA - Reprodução/Twitter/@spurs
Gregg Popovich, treinador do San Antonio Spurs é celebrado após bater o recorde de vitórias na NBA Imagem: Reprodução/Twitter/@spurs

14/03/2022 04h00

Quando o passe desesperado de Donovan Mitchell no segundo final de Jazz vs Spurs foi parar na torcida, sacramentando oficialmente a vitória dos Spurs por 104 a 102 em jogo disputado no AT&T Center, em San Antonio, Gregg Popovich conquistou sua vitória de número 1.136 como técnico do San Antonio Spurs, quebrando o recorde de 1.135 vitórias de Don Nelson para se tornar o técnico com mais vitórias da história da NBA.

E, para um técnico que acima de tudo ficou marcado como sinônimo de vitória e excelência, o palco dessa quebra de recorde talvez tenha sido decepcionante: a vitória levou os Spurs para míseros 26-42 de campanha, a quarta pior de toda a conferência Oeste, um jogo e meio atrás da última vaga do play-in. San Antonio vai terminar a sua terceira temporada seguida sem playoffs e com uma campanha abaixo de 50% de aproveitamento, uma mudança drástica para um time que antes disso vinha de 22 temporadas consecutivas indo à pós-temporada com campanhas vitoriosas - desde a primeira temporada completa com Popovich no comando da equipe.

Mas, se o cenário do recorde pode ter sido decepcionante, você nunca diria pela festa feita pelos jogadores e torcedores do San Antonio Spurs seguindo a confirmação da marca. Por alguns instantes, parecia que os Spurs tinham vencido mais um título de NBA, e você só precisava de um rápido vislumbre do vestiário dos Spurs depois do jogo - cheio de jogadores jovens de uma nova era dos Spurs, que nunca chegaram a se beneficiar da glória dos grandes anos de Popovich - para ver o quanto o técnico significava para seus comandados.

E essa reação demonstra algo aparentemente simples, mas que nos mostra como essa relação é muito mais profunda e complexa do que parece à primeira vista. A verdade é que Gregg Popovich, de muitas maneiras, É o Spurs; ele representa uma cultura e identidade que se tornou a própria identidade do San Antonio Spurs, algo totalmente indissociável da franquia. Os Spurs já existiam e tiveram sucesso antes de Gregg Popovich chegar, é claro, e continuarão existindo - e terão anos de glória - depois da sua eventual aposentadoria, mas é inegável como a chegada de Pop e seu trabalho ao longo dos anos alterou por completo a realidade da franquia para sempre. Existe um Spurs antes de Pop, e um depois - e é esse segundo que San Antonio quer levar como base para seu futuro.

Durante mais de duas décadas, os Spurs foram a grande inveja da NBA, o modelo que todos queriam copiar e sonhavam em internalizar: um time de mercado pequeno, sem o apelo do dinheiro ou dos holofotes, mas que consistentemente estava entre os melhores da NBA através de excelente gestão, continuidade, trocas inteligentes, e uma cultura única e vencedora. Durante esses mais de 20 anos, grandes times icônicos - como os Lakers de Kobe e Shaq, os Celtics do Big Three, o Heat de LeBron, os Mavs de Nowitzki, o Thunder de Durant e Westbrook - ascenderam e se desmontaram, equipes chegaram no topo e reconstruíram, e enquanto isso ano após ano os Spurs continuavam emendando temporada atrás de temporada com 55 vitórias e boa aparição nos playoffs.

E a virada de chave dos Spurs que iniciou essa dinastia, não por acaso, coincide a chegada de Popovich. Após alguns anos como assistente técnico de Spurs e Warriors, Popovich voltou aos Spurs em 1994 a princípio não como técnico, mas como general manager e presidente de operações da franquia, ajudando a levar a equipe às Finais do Oeste de 1995. Mas, em 1997, após um começo fraco e com seu melhor jogador em David Robinson tendo quebrado o pé, Popovich demitiu o técnico Bob Hill e assumiu ele mesmo o comando da equipe. Entendendo que os enfraquecidos Spurs precisavam de uma injeção de talento e de sangue novo, Pop aproveitou a lesão de Robinson e outros jogadores-chave em 1997 para tankar, perdendo o máximo de jogos possíveis para melhorar sua escolha no próximo Draft, com a qual poderia adquirir um novo talento para ajudar seus veteranos e voltar ao caminho competitivo em 1998.

A tática de Popovich deu certo: os Spurs ganharam a loteria do Draft naquele ano e trouxeram para San Antonio Tim Duncan, um dos 10 maiores jogadores de todos os tempos e o outro pilar que, junto com Pop, mudariam os Spurs para sempre. Já no ano seguinte, o primeiro completo de Popovich no comando da equipe, Duncan foi eleito Calouro do Ano, os Spurs venceram 56 jogos e chegaram às semifinais do Oeste; em 1999, os Spurs venceram seu primeiro título de NBA atrás das Torres Gêmeas de Duncan e Robinson, com o primeiro sendo eleito MVP das Finais. Estava inaugurada uma nova era na NBA.

Juntos, Popovich e Duncan venceram mais de 70% dos seus jogos, levaram para casa cinco títulos, venceram 50+ jogos ou o equivalente em 19 temporadas seguidas, recorde absoluto da NBA; após a aposentadoria de Duncan em 2016, os Spurs ainda teriam um ano de 61 vitórias e mais dois na casa dos 47 antes de começar a sequência de reconstrução atual. Mas não foram apenas as vitórias, os títulos e a consistência que chamaram a atenção, e sim as mudanças. Ao longo desse período, a NBA viveu intensas mudanças em estilo de jogo, regras, identidade e formato, e os Spurs acompanharam todas elas sem perder o ritmo, sendo o catalisador de algumas e sabendo se adaptar às demais melhor que ninguém. E Popovich, para alguém famoso pelo seu rigor espartano e controle militar sobre o elenco, sempre se mostrou extremamente não só capaz mas também disposto a se adaptar às circunstâncias: abençoado com dois jogadores de garrafão de Hall da Fama, Duncan e Robinson, ele montou um estilo de jogo dominante ao redor das suas duas estrelas; quando Robinson decaiu e o elenco de apoio esteve no seu mais fraco, ele soube concentrar o jogo em Duncan e fazer tudo rodar ao redor do seu MVP; quando a NBA começou a mover em uma direção mais variada e de perímetro com o fim das regras de hand check, ele deu mais liberdade e responsabilidade para os armadores Tony Parker e Manu Ginobili, e enfatizou rotação de bola e arremessos da zona morta. E por fim, quando nos anos 2010 a NBA passou a caminhar cada vez mais na direção das bolas longas e do jogo de velocidade, os Spurs se anteciparam ao resto da NBA e se reinventaram como um dos ataques mais explosivos da história com seus passes, chutes de fora e ataques à cesta. Esse último não só rendeu o último dos cinco títulos dos Spurs, mas mostra tão bem a genialidade e foco em vitórias de Popovich: embora abertamente alguém que não goste dos chutes de três pontos e do basquete baseado neles, Pop entendeu que essa era a melhor chance da equipe vencer - e se adaptou de forma brilhante para não só fazer isso, mas ajudar a transformar o basquete como um todo ao seu redor no processo.

E embora a carreira de Popovich na NBA seja mais do que suficiente para encher um livro, ele talvez seja uma pessoa tão icônica fora das quadras do que na beira delas: além de comandar a seleção dos EUA a uma medalha de ouro em Tóquio 2022, Pop se tornou uma das personalidades mais carismáticas e celebradas da NBA com seu estilo rabugento, amor por vinho, tiradas geniais, e entrevistas verdadeiramente humanas e profundas quando assim o quer. Pop também se destacou em causas humanitárias, tendo um papel ativo em diversos programas sociais na região de San Antonio, no resto dos EUA e também do mundo. E, talvez acima de tudo, em uma liga que tem uma relação profunda na sua história com a luta antirracista nos EUA encabeçada por líderes negros como Bill Russell, Elgin Baylor, Kareem Abdul-Jabbar e LeBron James, Popovich se destacou talvez como a mais vocal e significativa liderança branca a endossar esse aspecto da liga no século XXI, frequentemente falando abertamente sobre racismo sistêmico, privilégio branco e dando uma perspectiva diferente em uma das lutas mais importantes dos Estados Unidos. No processo, conquistou muitos odiadores e detratores, mas também causou um impacto que vai muito além e é muito mais importante do que seria capaz de conseguir se atendo apenas às quadras. Um dos maiores técnicos da história da NBA nas quadras, Pop também se mostrou um dos maiores de todos fora delas.

Quando Duncan caminhava para sua aposentadoria em 2016, havia boatos de que Popovich aposentaria junto com ele; que Pop não iria querer ser técnico sem seu parceiro de duas décadas. Acabou não acontecendo, e de certa forma, eu entendo que isso possa soar agridoce: apesar de seu lado extra-quadra aparecer com mais destaque nesses últimos anos, quando os debates envolvendo questões raciais cada vez mais voltou para o primeiro plano na NBA, foi um pouco melancólico ver Pop e os Spurs - que durante tantos anos foram sinônimo de vitórias e excelência - presos na mediocridade, em jogos irrelevantes e campanhas esquecíveis. Esses anos também derrubaram seus números, fazendo ele cair de ser o técnico no Top25 de mais vitórias da NBA com melhor aproveitamento de vitórias para ser "apenas" o terceiro no quesito, atrás de Red Auerbach e Phil Jackson.

Ainda assim, uma parte de mim está feliz que Popovich conseguiu ficar por perto tempo o suficiente para bater o recorde. Apesar desses anos ruins terem afetado a aura mítica que Pop construiu por 20 anos em San Antonio e o fez parecer mais humano, o número não deixa de ser uma última coroa, um último marco de glória que faltava para abrilhantar a carreira de um dos maiores e mais importantes - talvez O maior e mais importante - técnico da história do basquete. Pop, é claro, não precisava de nenhum número arbitrário para ser reconhecido como tal, mas uma cereja em cima do bolo nunca é demais.