Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Após outro massacre escolar, o desabafo pessoal e emocionado de Steve Kerr
Na tarde de terça-feira, dia 24 de maio, um atirador armado com dois rifles semiautomáticos - comprados legalmente alguns dias antes - invadiu uma escola em Uvalde, Texas, e abriu fogo contra os alunos. No momento, já foram confirmadas 21 mortes no atentado, sendo 19 de alunos que vão dos seis aos doze anos de idade, e mais dois professores, além do atirador. Esse novo massacre acontece apenas 10 dias após um supremacista branco abrir fogo em um supermercado em um bairro negro de Buffalo, matando 10 inocentes. Segundo a ONG Gun Violence Archive, ou GVA, esse foi o 247º tiroteio em massa nos Estados Unidos só em 2022, o que da em média 1,7 atentados por dia. 27 deles aconteceram em escolas, e o crime em Uvalde foi o que deixou o maior número de mortos entre todos os 247 (e contando).
E por mais terrível que pareça ler sobre um crime no qual 19 crianças inocentes foram massacradas dentro da sua própria escola primária, a verdade é que nos Estados Unidos esse é um fenômeno recorrente a ponto de ser quase normal. Os Estados Unidos são o país com maior número de armas em posse de civis em todo o planeta, com mais armas o que habitantes em uma proporção de 1,2 para 1, quase quatro vezes maior do que o próximo país desenvolvido na lista (Canadá). Não por acaso, os Estados Unidos também são com folga os países com mais mortes por armas de fogo (12,2 por 100 mil habitantes) e suicídios por arma de fogo (7,12 por 100 mil habitantes) entre países desenvolvidos, todos por uma larga margem em relação aos demais.
Os números envolvendo escolas são ainda mais chocantes; de acordo com um estudo compilado pela CNN, entre 2009 e 2018, foram cometidos 333 ataques a escolas envolvendo armas de fogo em todo o planeta. Desse total, 288 - incríveis 86% - aconteceram nos Estados Unidos. O segundo país com mais tiroteios em escolas no período foi o México, com OITO. Canadá, França e Alemanha são os únicos outros países desenvolvidos com sequer um atendado desses, totalizando 5 entre eles. Esse problema - bem como a relação com armas de fogo civis - é algo particular dos Estados Unidos, que gerou uma das manchetes mais famosas (e mais utilizadas) do site de paródia The Onion.
"'Não tem como impedir isso', diz único país onde isso acontece com regularidade" , diz a chamada.
E, sempre que acontece um tiroteio desses nos Estados Unidos, a sequência é a mesma; primeiro, raiva e tristeza da população, seguido de discussões sobre como é possível evitar os próximos tiroteios. Em geral, esses debates centram na questão do controle de armas, e como impedir que esses assassinos consigam adquirir armas militares com tanta facilidade, e são recebidas com forte oposição por uma parcela política de direita, em geral financiadas pelos fabricantes de armas. E nisso as propostas travam, e nenhuma mudança é feita, e o choque acaba passando... até acontecer o próximo tiroteio, e nada continuar acontecendo. Essa inércia e falta de mudanças efetivas são um indicativo do quanto os Estados Unidos, enquanto país, já se conformaram com a existência desses atentados, e até certo ponto os "aceitam" como preço para se manter o status quo.
Mas isso não quer dizer que muitas vozes ao redor do país não se levantem para pedir mudanças e em protesto com a inação dessa classe política, sonhando com um país onde crianças de 8 anos possam ir para a escola sem medo de serem baleadas. E, como é de se esperar, muitas dessas vozes vêm de dentro da NBA, uma liga que teve nos seus anos formadores um papel ativo e fundamental em batalhas sociais contra o racismo e pelo fim da segregação. Desde os anos 50, seus atletas estiveram na linha de frente nas lutas pelos direitos sociais e por uma melhora na qualidade de vida das pessoas do seu país, e quando o assunto é violência por armas de fogo, eles não fogem a dar suas opiniões.
De craques do presente como LeBron JAmes e Dwyane Wade até lendas do passado como Charles Barkley e Kareem Abdul-Jabbar, passando por nomes fora das quadras como Greg Popovich, a NBA tem sido participante vocal no debate e nos gritos pedindo por mudanças. Mas, mesmo dentro da NBA, uma voz em particular se destaca entre as demais. É a do técnico Steve Kerr, do Golden State Warriors, talvez a personalidade esportiva dos Estados Unidos que mais fortemente se posiciona sobre o assunto toda vez que ele volta à tona. E, depois do atentado em Uvalde, Kerr novamente ofereceu não apenas um apelo por mudanças, mas um desabafo extremamente emocionante e poderoso a respeito durante a conferência de imprensa antes do Jogo 4 das finais do Oeste entre Warriors e Mavericks.
"Estou cansado de minutos de silêncio", disse um Kerr visivelmente emocionado. "Estou cansado de oferecer condolências". Se recusando a falar sobre basquete na conferência, Kerr, ao invés disso, aproveitou o momento para novamente cobrar mudanças reais que impeçam novos atentados, destacando em particular a recusa dos senadores republicanos dos Estados Unidos em aprovar uma lei que tornaria obrigatório uma verificação de antecedentes antes de um civil poder comprar uma arma, e chamando de "patética" a falta de controle sobre armas de fogo nos Estados Unidos.
A poderosa mensagem de Kerr ecoou pelos Estados Unidos e também dentro da própria NBA, onde recebeu o apoio (entre outros) do seu principal comandado, Stephen Curry, que pediu aos torcedores que prestassem a mesma atenção às palavras do seu técnico que ao jogo de pós-temporada horas depois a menos de 400km de onde aconteceu o mais recente tiroteio em massa dos Estados Unidos.
E se a postura de Kerr é fácil de se entender mesmo à primeira vista - de novo, 19 crianças em idade escolar foram massacradas por armas compradas legalmente por um maníaco sem nenhum tipo de controle, não deveria precisar de mais do que isso - a mensagem é ainda mais retumbante quando você conhece a história de vida do ex-jogador e atual técnico, e percebe que ele entende como poucos a dor que esse tipo de violência pode causar.
Embora sua cidadania seja americana, Steve Kerr nasceu no Líbano, onde desde os tempos do seu avô sua família ajudando sobreviventes do genocídio na Armênia e refugiados de guerra. Crescendo no Oriente Médio em temos particularmente conturbados, Kerr cresceu em meio à guerra e violência, inclusive vendo amigos sendo mortos na guerra ou em atentados. E, aos 18 anos, o pai de Kerr - Malcolm Kerr, presidente da Universidade Americana de Beirute - foi assassinado a tiros dentro da Universidade em um atentado perpetrado por extremistas islâmicos, um momento que Kerr diria que abriu seus olhos para como a violência que ele via acontecendo com os outros podia afetar e entrar na sua vida de forma tão brutal.
Em posse desse conhecimento, o desabafo de Kerr ganha contornos diferentes - e ainda mais humanos. Para Kerr, não se trata apenas de uma questão teórica, de algo relativo a terceiros; Kerr sabe perfeitamente o quão destrutiva é essa violência, o quanto ela afeta não apenas os que perdem suas vidas, mas as pessoas que as vítimas deixam para trás, obrigadas a seguirem suas vidas sem um pedaço grande do que antes tinha sido sua vida. É sobre salvar outras pessoas de passarem pelas mesmas vivências, traumas e experiências horrendas que o próprio Kerr sentiu na pele. Quando ele fala, ele sabe do que está falando. Quando ele oferece condolências às famílias das vítimas, ele fala com elas como um igual, que realmente sabe pelo que elas passam.
Essa vivência e experiência por trás das suas palavras fazem com que o desabafo e os protestos de Kerr sejam muito mais importantes e impactantes do que se viessem de um anônimo, e até por isso - e pelo cargo que ocupa, e a visibilidade que ele lhe confere - é tão importante que ele continue a falar e pressionar por mudanças. E nós só podemos torcer e fazermos nossa parte para que ele, e tantos outros, enfim sejam ouvidos para que as próximas 19 crianças - e as 19 depois dessas, e as seguintes - não precisem morrer.
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