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Alicia Klein

O futebol tolera as mulheres

Marta com a bola depois da semifinal da Copa do Mundo de 2007 entre Brasil x Estados Unidos - Feng Li/Getty Images
Marta com a bola depois da semifinal da Copa do Mundo de 2007 entre Brasil x Estados Unidos Imagem: Feng Li/Getty Images

05/11/2020 16h32

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Em 2002, quando eu tinha 19 anos, um jogador da seleção brasileira de futebol masculino, campeão do mundo havia poucos meses, me prensou contra a parede do corredor de um hotel em Fortaleza e tentou me beijar à força. Meu namorado tinha acabado de entrar no banheiro, do outro lado desta mesma parede. Estávamos todos lá a trabalho e eu conhecia o tal jogador desde criança. Eu era maior do que ele. Meu pai também estava no hotel a trabalho. Nada disso impediu que este homem diminuto jogasse o peso do seu corpo sobre o meu, violando meu espaço e minha confiança. Eu o repeli, confusa, meu namorado saiu do banheiro e eu incinerei o assunto "para sempre". Lá se vão quase 20 anos de silêncio. Até ontem, só eu e o jogador sabíamos do ocorrido - embora eu duvide que ele se lembre, assim como duvido que este tenha sido seu primeiro ou último ataque.

São muitas as coisas tristes sobre esta história. Uma das piores: eu havia me esquecido dela. Depois de duas décadas de assédio constante, de NFL a universo olímpico, comecei a apagar os episódios do meu HD, uma espécie de ferramenta de autopreservação que acabou por liberar espaço para novos casos.

Pior também é que eu já tinha decidido que a primeira coluna neste espaço não seria "pessoal". Há suficientes assuntos espinhosos nos quais focar, com aquela isenção que a faculdade de jornalismo nos orienta a perseguir e o mundo real ensina não existir. Mas a verdade, minha gente, é que são tantos os carrinhos que tomamos todos os dias, como mulheres, que a isenção se torna não só impossível, como também irresponsável.

Chega de ignorar a realidade: o futebol apenas tolera as mulheres. A justiça brasileira, então, essa nos odeia. Não falo apenas de casos como os de Robinho, Jobson, Cuca, Cristiano Ronaldo e tantos outros acusados de estupro, cujas histórias vieram à luz em outubro (escrevi sobre isso aqui) com a mesma velocidade que agora voltaram às sombras.

A cada 90 minutos que passamos assistindo a uma partida de futebol, 11 estupros ocorrem no Brasil. No mundo, a OMS estima que uma em cada três mulheres já sofreu algum tipo de violência física e/ou sexual, especialmente pelas mãos de parceiros. Sabe quem não se surpreende com esses dados? Mulheres. O caso Robinho apenas arremessou nas manchetes aquilo que todas nós e os homens não cegos sabem desde a invenção da bola: o futebol é um porto seguro para assediadores, agressores, estupradores. Gasta-se um tempo que parece infinito nas mesas redondas com o desempenho dos atletas dentro de campo, reservando-se, quando muito, uns minutinhos de acréscimo para suas atitudes abjetas fora dele. E só quando não dá mesmo para evitar.

Daí o problema de nossa ausência nas posições de destaque. Chegamos a celebrar efusivamente o que deveria ser comum, como a primeira transmissão de um jogo de futebol (feminino) na TV aberta com um time só de mulheres, que aconteceu semana passada, na Band. Ou a CBF finalmente colocar uma mulher no comando da seleção feminina, o que só ocorreu meses atrás. Ah, mas já é um progresso! Porra, estamos em 2020. Por pouco, não tivemos carros voadores primeiro.

Enquanto não houver mais mulheres executivas, presidentes de clube, gerentes, árbitras, treinadoras, comentaristas, narradoras, editoras e mais, o universo do futebol seguirá hostil e potencialmente perigoso para 50% das pessoas. Somos metade da população, do público consumidor, das eleitoras, das chefes de família. Não é apenas moralmente questionável nos deixar de lado: é financeiramente estúpido.

Na semana em que precisamos engolir o conceito de estupro sem a intenção de estuprar e os quase 70 milhões de votos que Trump segue amealhando, apesar (ou talvez por causa) de todas as acusações de violência sexual, me vi sem saída. Queria falar de outra coisa, manter cremados os meus fantasmas, mas enquanto seguirem normalizando nossa subjugação faz-se obrigatório usar todas as plataformas possíveis para gritar: somos iguais! Com microfone na mão ou bola nos pés, podemos e devemos ocupar os mesmos espaços com os mesmos direitos. Acordem para seus privilégios, antes que mais de nós acordemos vítimas.