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Alicia Klein

Esporte: máquina de moer crianças?

Menina treina trave na Escola Nacional de Ginástica, onde está a elite da modalidade em Cuba - Ugo Soares/UOL
Menina treina trave na Escola Nacional de Ginástica, onde está a elite da modalidade em Cuba Imagem: Ugo Soares/UOL

12/11/2020 14h33

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Em 1976, Nadia Comaneci se tornou a primeira ginasta na história olímpica a conquistar uma nota 10. Ou melhor, sete notas 10. E cinco medalhas. Aos 14 anos de idade e 39 quilos.

A campeã dos Jogos de 1972 tinha 19 e a de 1968, 26 anos. Nadia virou referência, benchmark para usar uma palavrinha gringa besta. A partir dali, as grandes ginastas seriam, quase invariavelmente, muito jovens e muito miúdas (e muito brancas, mas isso é assunto para uma próxima coluna).

A ginástica é apenas o exemplo mais gritante de uma realidade inescapável do esporte: o trabalho infantil. Ou pior, o descarte infantil. Crianças começam a treinar cada vez mais cedo e com maior intensidade, diversas vezes sob pressão da família, sem qualquer garantia de que não serão arremessadas ao esquecimento na primeira lesão grave. Sob o guarda-chuva do sonho olímpico ou como única saída visível da pobreza, meninas e meninos são mastigados e cuspidos por um sistema que os consome como pecinhas descartáveis.

A ginasta romena Nadia Comaneci se apresenta na trave de equilíbrio durante o torneio de ginástica artística dos Jogos de Montreal - AP - AP
A ginasta romena Nadia Comaneci se apresenta na trave de equilíbrio durante o torneio de ginástica artística dos Jogos de Montreal
Imagem: AP

Em que outra indústria seria aceitável contratar funcionárias de 8 anos em jornada de trabalho de 12, 14 horas diárias, sem adicional de periculosidade pelos riscos físicos garantidos? Onde mais seria lugar-comum ver meninos morando longe dos pais, sob a supervisão de pessoas sem qualquer formação em educação ou psicologia infantil?

Atletas formam a base da pirâmide esportiva, em todos os sentidos. Alimentam, sustentam, compõem a maioria de um mercado que não existiria sem eles, mas que, ao mesmo tempo, dá-lhes pouquíssimo poder e influência. E, se desconsiderarmos as exceções da elite da elite da elite, também os remunera mal pela sua mão e pé de obra.

Mas para além da questão financeira e da discussão de como esta torta precisa ser mais bem dividida, o ponto que me tira o sono é a vulnerabilidade em que aceitamos ver as crianças que abastecem nosso entretenimento. Os jogadores do Flamengo que queimaram em contêineres dentro do Ninho do Urubu são um cruel exemplo do descaso com que jovens atletas são tratados. Longe de casa e da família, vivendo dentro de caixas de lata, morrendo no centro de treinamento de um clube que faturaria 900 milhões de reais no mesmo ano.

Quem ligou, de verdade, para esses meninos enquanto o Flamengo dominava o futebol brasileiro? Ou para as ginastas da seleção americana que tantas vezes foram dormir chorando de fome às vésperas de competições? (De fome. Os treinadores Marta e Bela Karolyi queriam vê-las magras no limite da inanição, porque "corpos mais leves voam mais alto".) Ou quem realmente se ocupa das centenas de crianças abusadas da maneira mais vil por quem deveria estar cuidando de sua saúde física e psicológica?

Quem é, então, responsável por sustentar esta máquina de moer guris e gurias? Certamente toda a indústria esportiva, federações e comitês internacionais, grandes clubes, órgãos reguladores, mídias e patrocinadores. Mas não só. Também nós, que aplaudimos atletas competindo lesionados, que não temos ideia da condição em que vivem jogadoras e jogadores da base do nosso clube, que torcemos por performances sobre-humanas de adolescentes que mal passaram pela puberdade: somos todos cúmplices.

Como pungentemente resumiu a ex-ginasta americana Gaby Geiculescu: "O meu problema é que o preço de uma medalha de ouro não vale o sacrifício de uma criança". Nenhum gol, nenhum título, nenhuma cesta, NADA vale o sacrifício de uma criança. Que a gente não se esqueça disso.

(Para quem entende inglês, recomendo demais a temporada 7 do podcast 30 for 30 da ESPN. Heavy Medals, sobre a trajetória dos Karolyi na ginástica romena e americana, dá golpes fortíssimos no estômago olímpico.)