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Alicia Klein

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Ser mulher na CBF: Caboclo é só a ponta de um iceberg assustador

Prédio da CBF, no Rio de Janeiro                    - Lucas Figueiredo/CBF
Prédio da CBF, no Rio de Janeiro Imagem: Lucas Figueiredo/CBF

12/06/2021 04h00

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Aviso de gatilho para mulheres, especialmente as que já sofreram assédio. Infelizmente, sei que somos muitas.

O que vocês lerão a seguir são relatos reais de mulheres reais que trabalham na CBF, hoje. É inacreditável, mas também previsível, em um ambiente historicamente tóxico.

Gerente da CBF marca reunião online com vice-presidente para discutir assunto importantíssimo para a entidade. Na ligação, com vídeo, ele reclama que ela está muito vestida, pergunta se ela não vai tirar a roupa. Diante da reação incrédula, quase atônita, ele diz que ela está muito tensa. Ela tenta evitar o assunto e passa a evitá-lo em competições. Ela conta para o RH e diversos colegas. Ninguém interfere. (Como vice-presidente, o assediador em questão é um dos possíveis candidatos à presidência, com a esperada saída de Rogério Caboclo.)

Agências precisam colocar prostitutas em nota fiscal de eventos.

Diretor comenta com colegas: "Sabe a que horas eu traio a minha mulher? Em horário de reunião."

Diretor começa a namorar outra funcionária. Namoradas anteriores são demitidas.

Gerente com direito a quarto individual é obrigada a dividir acomodação durante eventos para que funcionárias com relacionamentos dentro da CBF possam ter encontros a sós.

Mulheres evitam proximidade com certas figuras dentro do elevador.

A exposição de secretárias em reuniões é algo recorrente. Infelizmente, não há como detalhar alguns casos publicamente sem expor as vítimas. Garanto a vocês. São repulsivos e os personagens, muito conhecidos.

Estes são apenas alguns casos, com duas coisas em comum: o profundo desrespeito às mulheres e a impunidade. Em várias ocasiões, gestores e RH foram informados. Ninguém foi demitido por assédio.

Eu costumava dizer que o futebol só mudaria quando algumas figuras chave morressem. Corrupção, misoginia, racismo. Essas coisas não têm cura. Logo, a minha esperança estava atrelada à chegada de uma nova geração. Mas não. Gestores jovens vêm replicando o comportamento dos antecessores ou, na melhor das hipóteses, omitindo-se. A CBF mostra que mesmo os que já morreram fizeram escola, deixando um legado vil e contagioso.

Uma pessoa me definiu o ambiente na entidade como o "retrato do futebol brasileiro": homens abertamente validados na conduta de tratar mulheres, inclusive colegas, como objetos, permanentemente disponíveis para servir-lhes. Para muitas, é o preço a se pagar para sobreviver no meio.

Pergunto a vocês, então: e qual é o preço a se pagar por humilhar uma funcionária em público? Por tocar no corpo de alguém sem consentimento? Por assediar, moral e/ou sexualmente, uma mulher que, até hoje, se culpa por não ter feito mais para impedir que seu assediador importunasse outras mulheres?

Porque é isso, minha gente. Ainda somos culpadas - e nos culpamos - por não denunciarmos o suficiente. Por não sermos fortes o suficiente para seguirmos na luta, independentemente das consequências. Por não quebrarmos essa cadeia que, sabemos, fará vítimas nossas irmãs. Como se fosse nossa responsabilidade. Vítimas e procuradoras de justiça.

Como se fosse mais fácil nos fazer usar um permanente colete à prova de balas, em vez de simplesmente punir quem atira na gente. Que este inferno comece a ter fim com o caso de Rogério Caboclo. Esperança, hoje em dia, tenho pouca.