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Alicia Klein

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Mulher: o saco de pancadas do futebol (e do presidente)

Torcedoras do Flamengo aguardam para entrar no Maracanã - Ricardo Borges/UOL
Torcedoras do Flamengo aguardam para entrar no Maracanã Imagem: Ricardo Borges/UOL

11/10/2022 15h47

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Não sei se recebeu a devida atenção, ontem, o Dia Nacional de Luta Contra a Violência à Mulher. Eu mesma acabei escrevendo sobre o Palmeiras, que ficou uma rodada mais próximo do título. Porque é mais fácil, porque dá mais audiência.

Mas conversando hoje no Redação SporTV com os colegas, especialmente a corajosa Joanna de Assis, dei-me conta de que precisamos falar sempre que possível. Sempre, sempre.

Até porque o futebol tem papel importante, no problema e na solução.

Fruto de uma parceria entre Instituto Avon e Fórum Brasileiro de Segurança Pública, uma pesquisa apontou um dado alarmante: o número de registros de boletins de ocorrência de ameaça contra mulheres cresce 23,7% nos dias em que um dos times da cidade entra em campo pelo Campeonato Brasileiro. Se a partida é em casa, os registros de lesão corporal sobem 25,9%. Foram compilados dados de Belo Horizonte, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo.

Infelizmente, essa atrocidade não é exclusividade brasileira. Há levantamentos semelhantes com resultados igualmente terríveis nos Estados Unidos, no Reino Unido, no Canadá. O time do cara perde e ele desconta na mulher. O saco de pancadas das suas frustrações, que nem sequer estão enraizadas no esporte.

A masculinidade tóxica encontra no futebol uma enorme válvula de escape. É o lugar onde é permitido chorar, abraçar, extravasar, beijar os amigos. Mas é, também, o lugar para onde são canalizados os ímpetos mais violentos. A tribo, a gangue, os parças. Os inimigos. E os inimigos podem ser torcedores adversários, jogadores do clube que não correspondem a sei lá quais expectativas, seus familiares e, claro, a mulher. A mulher dele, a mulher que comenta, a mulher no estádio, qualquer mulher que ouse cruzar seu caminho na hora errada.

Parece exagero se você pensar somente na violência física. Na verdade, nem assim seria exagero. O Brasil é um dos países com maior índice de feminicídio do mundo. Uma sociedade profundamente machista, que ainda não suporta nos ver ocupando espaços tão cuidadosamente protegidos. Afinal, futebol é coisa de homem, né.

Mas quando você considera a violência emocional, aí abrem-se as portas do inferno. Vivemos isso todos os dias. Os xingamentos, os comentários maliciosos, as agressões verbais, os obstáculos postados para exaurir-nos, as tentativas incansáveis de nos mostrar que ali não é nosso lugar. A objetificação. Antes de qualquer coisa, a mulher é algo que existe para servir ao homem. Por isso, levam tanto em conta nossas características físicas. Porque nos coisificam. E é muito mais fácil agredir quem você considera menos que você. Quem você, no fundo, nunca respeitou.

Daí a importância de coibirmos todas as violências, dentro e fora do futebol. O feminicídio é apenas a ponta do iceberg de um caminho que começa com cantadas, xingamentos, uma mão indesejada, com um prato arremessado em um momento de nervosismo porque o atacante perdeu aquele gol.

O futebol como instituição, por meio de seus jogadores, treinadores, clubes, dirigentes, confederações, tem o dever de fazer mais. De mostrar que a violência não será aceita como parte do seu pacote. Que não servirá de desculpa para fulano descer a mão na mulher.

Como fazer isso de forma efetiva? Sinceramente, não sei.

Fica difícil não perder a esperança em um país que elege para presidente um homem gravado em vídeo dizendo a uma colega deputada: "não te estupro porque você não merece". Quando ele empurra, agride, manda calar a boca, chama de quadrúpede, de fraquejada, isso manda uma mensagem. Quando sua esposa, bela, recatada e do lar, afirma que "mulher tem que ser ajudadora do esposo", isso manda uma mensagem.

A mensagem é: vocês valem o que eu achar que vocês valem e seus corpos estão à nossa disposição. Para xingar, bater, estuprar. Pelos motivos que a gente quiser. Fica quieta aí e não enche o saco.

Então, não sei se tem solução. Só sei que não vou ficar quieta e vou encher muito o saco, até alguém ouvir.