Alicia Klein

Alicia Klein

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
OpiniãoEsporte

'Pai, o Senna não pode morrer, né?' A triste memória que não queria ter

Era uma manhã preguiçosa de domingo, como tantas outras. Meu pai e eu estirados no sofá, seguindo nosso ritual consagrado de finais de semana.

Em um segundo, tudo mudou. "Pai, por que o Ayrton não está se mexendo?"

Quando as notícias começaram a chegar, minha reação, como imagino tenha sido a de quase todos nós, foi descrença. "Pai, o Senna não pode morrer, né? Se só o cérebro parou, ele pode voltar, né?" Choramos muito, abraçados, incrédulos.

Eu tinha 11 anos quando conheci a morte. Não era um parente. Mas era um conhecido. Do meu pai e do mundo todo. E, assim, do nada, na velocidade em que tinha vivido, em milésimos de segundo, ele se foi. Deixou de nos fazer companhia. Num piscar de olhos.

Catorze anos depois, em 2008, lancei a biografia de um de seus maiores adversários na reta final da vida: "Michael Schumacher: o melhor de todos os tempos" (Editora BestSeller). Dá para dizer que o título não envelheceu bem, mas vem aí uma nova edição e algumas novas ideias.

Reproduzo aqui, emocionada, o capítulo que relata aquele 1o de maio, 30 anos atrás, que todos gostaríamos de apagar da história.

***

Autódromo Enzo e Dino Ferrari, Grande Prêmio de San Marino, Ímola, 1o de maio de 1994. O dia que completaria o final de semana mais catastrófico das últimas décadas da Fórmula 1. Logo na largada, o finlandês JJ Lehto deixou seu motor apagar e, parado na quinta posição do grid, nem viu quando o português Pedro Lamy acertou-lhe a traseira. Pedaços de Benetton e Lotus voaram para todos os lados, ferindo quatro espectadores nas arquibancadas. Para não interromper a corrida, o safety car entrou em ação enquanto os destroços eram removidos do asfalto.

Passaram-se cinco lentos giros em fila indiana até que a pista fosse liberada. Senna manteve a ponta depois da relargada, e, ao passar pela primeira vez em alta velocidade na Tamburello, o assoalho de sua Williams bateu no chão irregular produzindo faíscas. "Eu vinha logo atrás do Ayrton e vi que o carro dele estava um pouco instável e difícil de segurar", comentou Schumacher.

Continua após a publicidade

Na volta seguinte, ainda com os pneus frios, o carro do brasileiro balançou e, desta vez, não fez a curva. Às 14h12 (9h12, horário de Brasília), Senna passou reto e encontrou o muro. A telemetria mostrou mais tarde que ele entrou na Tamburello a 307km/h, sentiu que o carro não ia virar, tirou o pé do acelerador, tentou consertar a rota, pisou na embreagem, em seguida no acelerador, até, já na área de escape, frear bruscamente - em alguns décimos de segundo. A Williams FW16 número 2 atingiu a parede de concreto de Ímola a 216km/h, com Ayrton passageiro.

A cena remetia à de Roland Ratzenberger, do dia anterior, e somente a força do choque contra o muro - como acontecera com o austríaco - teria sido suficiente para gerar graves sequelas. O brasileiro, no entanto, enfrentou um problema ainda maior: a barra da suspensão dianteira soltou-se e atravessou a viseira de seu capacete. Traumatismo fatal. Um minuto e 40 segundos depois do choque, os médicos, comandados pelo amigo pessoal de Senna, o dr. Sid Watkins, realizavam uma traqueostomia no inconsciente e desfigurado piloto. De helicóptero, às 14h33, ele foi levado ao Hospital Maggiore de Bologna.

[Hoje, o UOL publicou declarações do médico Alessandro Misley, que afirma não ter sido a barra de suspensão a responsável pela morte.]

"Eu tinha certeza de que ele estaria como eu depois do meu acidente, que ficaria alguns minutos desacordado. Eu fiquei quase 15 minutos desacordado, então não fiquei muito preocupado. Mas depois que o levantaram e eu vi o sangue, fiquei preocupado", contou Rubens Barrichello.

Às 18h05, a médica-chefe do setor de reanimação, Maria Tereza Fiandri, anunciou que já não havia mais atividade cerebral no piloto. Ayrton era mantido vivo por aparelhos. Menos de quarenta minutos depois, seu coração pararia também. Às 18h42 (13h42, horário de Brasília) de 1o de maio de 1994, Ayrton Senna da Silva estava morto. Antes disso, porém, o Grande Prêmio de San Marino, interrompido apenas momentaneamente, fora reiniciado e mais 51 giros completados. Antes que o deprimente final de semana acabasse, uma roda da Minardi de Michele Alboreto se soltou durante o pit stop atingindo cinco mecânicos (três da Ferrari, um da Lotus e um da Benetton) e um comissário, que precisaram ser levados ao hospital.

Schumacher, que estava perto o suficiente da Williams de Senna para assistir ao acidente - foi a câmera embutida em seu carro que registrou as primeiras imagens do fatídico instante -, venceu a corrida, com Nicola Larini (substituindo o lesionado Jean Alesi) da Ferrari em segundo, e Mika Häkkinen em terceiro pela McLaren. Não houve comemoração no pódio; tristeza e cabeças baixas no recebimento dos troféus e champanhe dispensado. "O que aconteceu é tão dramático que não sinto nenhuma satisfação", afirmou Michael em seguida. "Não está certo e não há como explicar o que se passou, mas precisamos aprender com isso e talvez agora os pilotos comecem a pensar sobre limitar a velocidade."

Continua após a publicidade

O banimento da suspensão ativa foi uma das principais dificuldades enfrentadas pela Williams naquele ano. Sem o dispositivo que controlava a altura do assoalho em relação ao chão, o bólido ficou instável e sem aderência. Além deste problema e da reduzida área de escape do circuito de Ímola, as altas velocidades atingidas preocupavam os pilotos. Jean Alesi, fora das pistas desde o início do ano em função de um acidente durante testes da Ferrari, comentou: "As máquinas atuais são quase incontroláveis e muitas vezes imprevisíveis." Estava dada a largada para uma cruzada por mais segurança na Fórmula 1.

Na manhã daquele 1o de maio, em artigo publicado no diário alemão "Welt am Sonntag", Senna relatara sua situação no campeonato e suas preocupações em relação ao Grande Prêmio de San Marino:

"A Benetton de Schumacher é realmente um carro muito bom, mais do que tudo, nas curvas longas. É uma coisa que está me dando muita dor de cabeça, já que expõe os pontos técnicos fracos da minha Williams. O meu carro reage de maneira um pouco nervosa a este tipo de superfície de corrida. Isto tem a ver com sua aerodinâmica especial, mas também está relacionado com uma dificuldade na suspensão. Por estas razões, no começo da semana passada, nós experimentamos algumas modificações aerodinâmicas que, nos treinos de Ímola, eu já coloquei em prática. Depois das duas primeiras corridas da temporada (Japão e Brasil), disse aos diretores das provas que, no futuro, devíamos olhar mais criticamente a capacidade dos nossos mais inexperientes pilotos. Neste fim de semana, meu medo se concretizou com a morte de Roland Ratzenberger, que corria sua primeira temporada. No dia anterior, Rubens Barrichello bateu ema alta velocidade. Sei, pela minha própria experiência, que a maneira de um corredor jovem encarar uma corrida e aceitar seus riscos é totalmente diferente da de um piloto maduro. Nosso problema é que, neste momento, há muitos pilotos jovens na Fórmula 1 e isto aumenta o perigo."

Aos 4 de maio, o Brasil pôde chorar seu ídolo em casa. São Paulo parou para ver o caixão de Ayrton Senna - envolto pelo lábaro estrelado - ser levado à Assembléia Legislativa sobre um caminhão do Corpo de Bombeiros. Lá, o velório seguiu madrugada adentro, para que todos os fãs, aglomerados em uma fila quilométrica, tivessem a oportunidade de dar adeus ao homem alçado ao panteão dos heróis nacionais. No dia seguinte, o piloto foi enterrado no Cemitério do Morumby, sob os aplausos de parentes, amigos e milhares de brasileiros anônimos que tentavam acompanhar a cerimônia por detrás dos muros. O país estava de luto, como só se vira quando da morte do líder populista e ex-presidente suicida, Getulio Vargas.

Entre os colegas de profissão, Jackie Stewart, Gerhard Berger (seu melhor amigo na F1), Alain Prost e Emerson Fittipaldi foram alguns daqueles a prestar suas últimas homenagens a Ayrton Senna. Bernie Ecclestone chegou a viajar a São Paulo, mas não compareceu aos ritos fúnebres depois de a família deixar claro que sua presença não seria apreciada. Consideravam o reinício da prova em seguida ao acidente uma insensibilidade.

De volta ao local do infortúnio, dentro do que restara da Williams de Senna, os fiscais de prova encontraram uma bandeira da Áustria. O brasileiro pretendia dedicar sua 42a vitória à memória de Roland Ratzenberger, até que a Tamburello colocou-se no caminho da homenagem.

Continua após a publicidade

***
Siga Alicia Klein no Instagram e no Twitter

Leia todas as colunas da Alicia aqui

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Deixe seu comentário

O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.