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'King Kong Fran': ser mulher no futebol não é tão diferente do circo

No sábado, pude finalmente assistir à peça queridinha das feministas raivosas (também conhecidas como mulheres exaustas): King Kong Fran.

Mas o que essa obra-prima de Rafaela Azevedo tem a ver com o futebol? Nada e tudo. Porque ela tem a ver com a experiência de ser mulher no mundo, especialmente em ambientes machistas. No caso dela, o circo. No meu, o esporte.

É infernal a objetificação. A violência. Os comentários condescendentes. Até dos mais bem intencionados, os desconstruídos, os esquerdomachos. Não chegam a pedir para vestirmos um biquini e atirar facas na nossa direção. Mas o princípio é parecido.

Desde o "está aqui a fulana, que além de inteligente é também muito bonita (ou além de bonita é também inteligente)", passando pelas interrupções sem fim, a desqualificação da nossa opinião, a necessidade de ter sempre a última palavra, de tratar os espaços que ocupamos como cotas.

Recomendo uma atividade antropológica para quem acompanha os programas esportivos: passem a notar a virulência da reação quando não concordamos com os homens, a necessidade deles de nos interpelar sem que tenhamos terminado nosso ponto de vista ou o fato de que dificilmente nos permitem encerrar um assunto — ainda que precisem repetir algo que já disseram e que já foi desbancado. Fazem com a gente o tempo todo coisas que não fazem nunca entre si.

Outra pergunta de cunho meramente científico: quantas mulheres fora do padrão de beleza tradicional você vê no vídeo? E os caras? Tem de tudo: alto, baixo, gordo, magro, cabeludo, careca, dicção boa, língua presa, pele lisinha ou cheia de acne. Super diverso, desde que sejam brancos e héteros. Eles podem tudo, inclusive aparecer para trabalhar sem fazer a lição de casa.

Agora, imaginem só se uma mulher (ou qualquer pessoa de grupo minorizado) vai se expor assim? Dar a cara a tapa sem preparo? Sem um quilo de maquiagem? Sem se preocupar com o que estão pensando dela? Nunquinha. Esse é um luxo masculino.

Assim como é um luxo masculino assistir ao espetáculo da Fran, dar um monte de risada das situações absurdas que você não vivencia no seu dia a dia — ou mesmo se chocar com a violência empregada contra o pobre coitado da plateia — e voltar para casa tranquilo. Sem reviver todos os seus traumas. Sem relembrar da vez (ou vezes) em que você também foi estuprada. Sem precisar compartilhar sua corrida de aplicativo com várias pessoas, a fim de minimizar o risco de sofrer algum tipo de abuso.

Deve ser bom ser homem, né? No circo, no futebol, em qualquer lugar.

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Poder simplesmente acordar, estudar, trabalhar, vestir a roupa que bem entender, não lavar a louça, ter alguém para cuidar de você, não ser passado para trás ou culpabilizado, ter sempre o benefício da dúvida (mesmo quando condenado por um crime hediondo), assistir a uma série e dormir neném, tudinho sem terror psicológico e medo constantes. Deve ser bonzão.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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