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Por que tantas mulheres odeiam futebol

A resposta, claro, está relacionada à misoginia, a privilégios e, acima de tudo, a poder.

Se você tem mais de 30 anos, é muito provável que você tenha crescido em um lar com uma televisão. Um único aparelho. Quem escolhia o que assistir?

"Lá na minha casa, mineira, cheia de nãos e senões, a TV era mais um dispositivo de perpetuação das relações de poder. Minha mãe ama filmes e séries, mas a que horas ela podia fazer o que gostava? Quando meu pai dormia. E quando a rotina pesada do cuidado pausava. Porque era dele. Ele estava vendo. Ele era a prioridade. E eu cresci vendo isso gritando na minha cara."

O relato é de uma amiga minha, mas certamente poderia ser seu ou de uma amiga sua. Em inúmeras famílias, o futebol significa esse momento sagrado, imperturbável, impenetrável, quase sempre dos homens. Aquele momento em que não dá para sair, cuidar da casa, das crianças, fazer absolutamente nada de funcional, afinal meu time vai entrar em campo. Aproveita que você está na cozinha e me traz uma cerveja?

É óbvio que futebol não é coisa de homem. Eu e tantas colegas somos a prova viva disso. Somos, também, a prova viva do quanto não nos querem neste espaço. Do quanto é violenta a resistência. Do quanto preferiam quando a gente não entrava. Não assistia, não frequentava estádio, não trabalhava com isso, não jogava bola. Bons tempos, né?

Aí você se pergunta por que tantas mulheres adultas odeiam futebol. Têm asco, raiva. É fácil entender. "Não é que não gostasse de futebol. Eu odiava. E ainda odeio que algo me lembre da minha impossibilidade de descanso, das diferenças enormes entre nossas responsabilidades e compromissos em casa, da diferença dos nossos direitos nesse microcosmo que é nossa casa e da conclusão perturbadora que é 'ignore seu desejo', porque as necessidades do homem da casa estão acima de qualquer coisa." Sim, minha amiga consegue traduzir sentimentos em palavras muito melhor do que eu.

Sente em uma mesa de bar com homens de uma certa idade. Invariavelmente, a conversa girará em torno de futebol — não do cansaço gerado pelo trabalho doméstico, das preocupações com os filhos, do estado da sociedade, das injustiças enfrentadas diariamente. Muitos gastam horas e mais horas do seu dia consumindo futebol: jogos, mesas redondas, redes sociais, notícias, grupos de zap, textos, enfim, coisas como o meu trabalho.

Sim, mulheres também fazem isso, também gostam de futebol e também investem uma quantidade insalubre de tempo acompanhando este universo. Mas sabe quantas mulheres eu conheço que deixam de cuidar da casa, dos filhos, põem o trabalho e os estudos de lado, atiram-se no sofá sem culpa, com os pés para cima, enquanto o mundo cai ao seu redor, para acompanhar tranquilas uma partida? Nenhuma. Homens? Minha lista seria imensa — e incluiria alguns dos melhores e mais "participativos" representantes do gênero.

O que fazer em relação a isso? Se você é mulher, receba aqui o meu abraço. Eu também odiaria se fosse você. Só não odeio porque sofro desta patologia desde criança e meu vício virou minha profissão. Se você é homem, levante a bunda do sofá, por gentileza. Olhe em volta. Veja se o seu lazer não está sobrecarregando uma mulher. Veja se ela também consegue descansar, desopilar, desligar de tudo. Faça a sua parte, que não é mais que sua obrigação. Então, tenha alguma decência e pegue logo uma cerveja para ela.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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