Corleone: 'Os homens estão furiosos'
Reproduzo aqui o poderoso texto da escritora Clara Corleone (@claracorleone), originalmente publicado em seu Instagram, em resposta à repercussão das denúncias da também escritora Vanessa Barbara no podcast Rádio Novelo Apresenta. Ele se aplica com perfeição às reações furiosas que tenho recebido por criticar Neymar ou os comentários deixados nas redes da jornalista Nathália Freitas, vítima de machismo do presidente do Atlético-GO. Nós sofremos as violências. Eles ficam incomodados.
Os homens estão furiosos
Estão furiosos porque foram estuprados a cada 6 minutos no Brasil em 2023? Furiosos porque mais da metade (61,6%) dessas vítimas são meninos de, no máximo, 13 anos?
Não.
Os homens estão furiosos porque 84,7% dos agressores são familiares ou conhecidos e que as vítimas de até 17 anos compõem 77,6% de todos os registros?
Não.
Bom, então os homens devem estar furiosos porque a cada 6 horas um deles é morto no Brasil? E furiosos porque, diariamente, no mundo, 140 homens são mortos por alguém de sua família, o equivalente a um a cada 10 minutos. É isso?
Não.
Pera. Então os homens estão furiosos porque 47% dos brasileiros sofreram assédio sexual de brasileiras em 2023, né? E mais furiosos ainda pela ocorrência ser mais comum entre jovens de 16 a 24 anos. É um bom motivo para estar furioso!
Não, também não é isso.
Então já sei: a fúria dos homens é porque mais de 250 mil casos de violência doméstica foram registrados no Brasil em 2023, sendo o marido/companheiro a vítima da covardia de sua esposa/companheira!
Também não?
Deixa eu entender:
Estão furiosos porque, no Brasil, os homens recebem em média 20,7% menos que as mulheres no setor privado?
As mulheres trabalham 9,5 horas em casa, enquanto os homens trabalham 22 horas?
Quando ficam doentes, tem 20,8% de possibilidade de serem abandonados pela parceira contra uma taxa de 3% para mulheres?
Poxa, também não?
Todos esses dados, obviamente, foram trocados. São as mulheres as atingidas. Mas quem está furioso (ou magoado ou chateado ou se sentindo perseguido) essa semana? Os homens. Eu acho absolutamente histérico quando me perguntam porque as mulheres estão tão furiosas.
Alguém pode argumentar que as mulheres parecem muito mais furiosas essa semana do que os homens. Meu bem, fique feliz se estamos apenas furiosas. As mulheres deveriam estar dando o troco. E não com posts, textos, campanhas, relatos, hashtags, livros, deboche. Não. Se quiséssemos dar o troco de verdade, seria na mesma moeda. O problema é que seria impossível alcançar esse nível de violência que provém do pacto brutal que vocês acordaram desde que o mundo é mundo.
Vamos focar somente em assédio sexual? Aprendemos a agir com cautela desde meninas: o que vestir, em quais ruas andar, em qual horário. O mesmo cuidado que homens têm com seus pertences em determinados locais e horas, temos que ter com o nosso corpo O TEMPO INTEIRO EM TODOS OS LUGARES. Não temos opção de deixar nosso corpo em casa quando saímos. Como faríamos para dar o troco? Teríamos que ensinar nossas meninas a tratar os meninos como vocês nos tratam pelos próximos séculos. Horrível, brutal e covarde, certo? São apenas crianças. Pois é. Bem-vindos a nossa realidade.
A primeira vez que um homem me assediou eu tinha SEIS anos. Por que eu estou furiosa? A pergunta é: por que eu não deveria estar furiosa? Os motivos para a minha fúria abundam. E eu sou uma mulher branca, cis, hetero, magra e oriunda da classe média. Eu estou no topo do topo e estou IMENSAMENTE furiosa. No entanto, fora da minha bolha, a maioria das mulheres não está furiosa. Não está sequer incomodada.
Já os homens, bem, eles estão sempre furiosos. E resolveram ficar especialmente furiosos essa semana. O motivo: a partir de um episódio de podcast, está em foco a cultura da broderagem, da conversa de vestiário e do pacto entre eles. Eu não tenho NENHUM interesse em pessoalizar essa discussão. Para mim, não é sobre o escritor fulano de tal, é muito mais amplo. Meu interesse é refletir sobre uma CULTURA que está na base da PIRÂMIDE DE VIOLÊNCIA que culmina no nosso título: 5º país que mais comete feminicídios no mundo.
Vocês estão furiosos (ou magoados ou chateados ou se sentido perseguidos) porque essa semana (vejam bem que sorte, só essa semana) estamos falando de uma cultura que fomentam desde o início dos tempos. Já nós estamos furiosas porque vocês estão, indireta ou diretamente, nos matando. Entenderam a diferença? Imagina se os primeiros dados que eu apresentei fossem realmente assim? Essa é a nossa realidade.
E aí aparecem os mais irritadinhos questionando "tá mas o que podemos fazer?". Só falta coçar o saco e me mandar cozinhar. "Faz minha janta, mulher, e explica aí qual o passo-a-passo preu deixar de ser babaca". Meu irmão, quem sabe vocês não SE VIRAM? Além de tudo ainda fica na nossa responsabilidade ajudar vocês? A ensinar? A gente, LITERALMENTE, tem mais o que fazer. De qualquer forma, tem bastante texto por aí pra você ler e (tentar) melhorar. Angela Davis tem vários. bell hooks, também. De nada.
Caros homens, ao invés de ficarem #chateados com a discussão sobre uma cultura que mata mulheres todos os dias, deem graças a Deus que não estamos revidando. Estamos pedindo que vocês tirem o pé dos nossos pescoços.
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49 comentários
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Luiz Fernando Pizzo
Quanta misandria. Mude homens para agressores, os desajustados, etc. Essa generalização só piora.
Jose Carlos Amaral Kfouri
Excelente!
Marcio Francisco Zichia
O q seu pai fez com vc, pra ter tanta r Aiva assim dos homens??