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André Rocha

Guardiola e o dilema dos "gerentes": como ser protagonista sem treinar?

Pep Guardiola interage com Domenec Torrent (esq.), seu auxiliar nos tempos de Bayern de Munique - Pressefoto Ulmer\ullstein bild via Getty Images
Pep Guardiola interage com Domenec Torrent (esq.), seu auxiliar nos tempos de Bayern de Munique Imagem: Pressefoto Ulmer\ullstein bild via Getty Images

Colunista do UOL Esporte

04/11/2020 07h34

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"Nosso trabalho é sobreviver. A gente seleciona os jogadores e nada mais. Treinador hoje em dia não é treinador, é gerente. Temos pouco tempo para fazer as coisas. É partida, recuperação, partida, recuperação".

Palavras de Pep Guardiola ao Esporte Interativo, depois da vitória do Manchester City por 3 a 0 sobre o Olympiakos pela Liga dos Campeões. A pergunta era sobre o trabalho do amigo e ex-auxiliar Domènec Torrent no Flamengo, mas a resposta gera um debate mais amplo.

Principalmente para ambos, adeptos do jogo de posição. Uma proposta que exige repetição de movimentos, ocupação racional dos espaços e força física e mental para os atletas executarem o planejado e conquistarem protagonismo nas partidas.

Protagonismo no futebol atual significa ocupar o campo de ataque, pressionar logo após a perda e errar pouco quando tem a bola para não ser surpreendido. É preciso deixar sempre o adversário desconfortável para não sofrer aperto. Se falhar, especialmente na reação logo depois que o oponente recupera a posse, oferece o melhor dos mundos: espaços para acelerar às costas da defesa adiantada.

Como fazer sem treinamentos e também sem pernas por conta de um calendário insano, que precisa compensar no mínimo três meses de paralisação pela pandemia? No Brasil, o que foi trabalhado na pré-temporada ficou para trás. O descanso longo não acumulou fôlego para ser gasto agora com dois jogos por semana, sem um respiro. Na Europa, a pré-temporada 2020/21 foi praticamente ignorada para adequar o calendário. E lá vem uma segunda onda da Covid que, se agravar, pode parar tudo de novo.

É um contexto único, mas a cobrança não mudou, nem foi relativizada. Os treinadores, ou gerentes, precisam resolver os problemas de qualquer jeito. Na conversa, no vídeo, em uma sessão de treinos entre as partidas que precisa ser administrada com todo cuidado para não aumentar os riscos de lesões que já são enormes.

E não adianta muito rodar o elenco, porque a comissão técnica não pode parar para treinar o time do domingo com toda logística do jogo de quarta. Na maioria das vezes, aliás, o titular poupado fica no banco para uma necessidade. A única vantagem é refrescar as pernas.

E vale também uma observação: o atleta profissional tem condições de jogar futebol todo dia, se preciso. Ele faz isso até nas férias, se quiser. Quando se fala em descanso não é dar folga, vida fácil ao atleta que é muito bem remunerado nos grandes clubes. Apenas colocá-lo em condições de competir no mais alto nível possível em um jogo cada vez mais intenso e físico.

Não há tempo, mas é preciso ter soluções. Surge a cobrança um tanto covarde: "treinador ganha bem para isso, ele que se vire". Ele é pago para treinar, preparar o time. Se só resta escolher jogadores como uma seleção, mas sem o "cardápio" tão vasto dentro de uma nacionalidade, o trabalho já está comprometido.

E se o jogador escolhido falhar, seja por deficiência, exaustão ou falta de treino, a culpa também recai sobre o técnico, que ainda precisa gerenciar egos e não perder o vestiário. Tem que assumir a responsabilidade pelo ofício de quem está em campo. Tudo fica mais complexo quando se joga, por exemplo, com linhas mais adiantadas e os movimentos têm que ser precisos.

Por isso requer mais paciência. Entregar um prato elaborado exige tempo e estrutura. Bem diferente de um "fast food" baseado em fechar a casinha, esperar o erro do outro lado e usar o contragolpe ou a bola parada. Estratégia legítima, mas não pode ser a única. Quem pensa futebol de outra maneira deve ter a chance de tentar colocar em prática sua visão.

A última rodada do Brasileiro sinalizou uma possibilidade de mudança de rota: Corinthians e Palmeiras venceram Internacional e Atlético Mineiro com propostas reativas. Nem tanto o São Paulo nos 4 a 1 sobre o Flamengo, mas jogar como "franco-atirador" explorando os erros dos rubro-negros foi confortável para a equipe de Fernando Diniz.

Negar espaços e deixar a posse para o adversário é do jogo, mas não pode ser a saída por ser mais "fácil" e se adequar melhor ao cenário atual. O jogo também é entretenimento e vem evoluindo desde o ano passado. Há um movimento saudável de aliar o desempenho ao resultado. Vencer, mas também divertir.

Para fazer um espetáculo, porém, é necessário ensaiar. E treinadores viraram gerentes, mas aqueles que resolvem problemas por demanda. Apagam incêndios, sem grandes planejamentos. Um dia por vez, jogo a jogo. Para sobreviver. Difícil fazer futebol em alto nível assim.

Qual a solução, então? Este que escreve não sabe responder, só expõe o incômodo. É o dilema a ser resolvido, por Guardiola, Domènec e quem mais tenta fazer diferente e não pode perder este direito.