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André Rocha

Conforme-se! A seleção não é mais a mesma e nunca será

Roberto Firmino comemora gol marcado pelo Brasil sobre a Venezuela em jogo das Eliminatórias - Nelson Almeida-Pool/Getty Images
Roberto Firmino comemora gol marcado pelo Brasil sobre a Venezuela em jogo das Eliminatórias Imagem: Nelson Almeida-Pool/Getty Images

Colunista do UOL Esporte

14/11/2020 04h00

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Curiosa a relação de muitos com a seleção brasileira. Bradam nas redes sociais que o clube é que importa, xingam o treinador por atrapalhar convocando os jogadores do time de coração e garantem que nem ligam para os jogos.

Mas lá estão acompanhando, mesmo numa sexta à noite. Ok, a pandemia para quem é responsável limita bastante as opções de lazer. Mas filmes e séries estão aí para entreter. E falta de futebol não pode ser queixa no país que não para a bola. Quarta teve Copa do Brasil e no sábado já tem Brasileiro.

Para que se torturar, então? E também encher a paciência nas redes sociais com queixumes de criança birrenta e aquele discurso surrado de que "a seleção não é mais a mesma".

A primeira pergunta é simples: não é mais a mesma em relação à qual época? Porque parece que vivemos um 1970 que durou 50 anos e só agora a seleção perde e joga mal. E os 4 a 0 para o Chile na Copa América de 1987? E a eliminação para Honduras no mesmo torneio com Felipão em 2001 que foi tachada como a "morte do futebol brasileiro"? Mesmo discurso depois da Copa de 1990, inclusive demonizando os "mercenários" que jogavam na Europa. Os mesmos que protagonizariam a conquista do tetra, quatro anos depois.

O fato é que soa cada vez mais "descolado" criticar a seleção brasileira em redes sociais. E contra a Venezuela vem acoplada a certeza de que é obrigação golear sempre. E o mais curioso: gente que pede mais jogadores atuando no Brasil com a camisa verde e amarela parece que não reconhece que estiveram em campo Soteldo, Savarino e Otero, que já foram e ainda são tão exaltados em nossos campos. Para não citar Rondón, hoje na China, e Darwin Machís, que atua com destaque no Granada, quinto colocado da liga espanhola.

A seleção vinotinto é que não é mais ingênua como antes. Lá nos anos 1970/80 era um bando de jogadores que tentavam fechar a entrada da área, sem nenhuma coordenação e cometendo erros técnicos primários. Hoje as linhas são compactas e entre a última da defesa e o atacante mais adiantado não há mais que 30 metros na maior parte do tempo. E o comportamento não muda, mesmo sofrendo um gol.

O Brasil vai penar, sim. Porque sem espaços e sem treino é muito mais difícil jogar futebol no século XXI. Em um processo de reformulação e com desfalques mais ainda. É preciso ter naturalidade, entrosamento, jogar "de memória". Tocar, rodar, inverter, triangular, arrastar marcadores. Não dá mais para entregar a bola para alquém resolver como antes, mesmo que seja Neymar.

Sim, a seleção jogou mal na vitória por 1 a 0 no Morumbi. E talvez nem o gol bem anulado de Firmino por impedimento de Renan Lodi logo aos seis minutos de jogo tirasse a Venezuela de seu plano de jogo. Falta drible pelas pontas? Por características, sim. Nem Lodi pela esquerda, nem Gabriel Jesus ou Richarlison á direita são tão habilidosos no um contra um. Mas mesmo que fossem teriam que receber uma inversão rápida para encarar apenas um marcador. Como fazer isso sem a segurança da repetição?

O Brasil não tem uma base de clube, como já tiveram Espanha, com Barcelona e Real Madrid, e Alemanha, com Bayern e Dortmund. Nossos melhores jogadores estão espalhados pela Europa e alguns, por motivos diversos, no Brasil. Como Everton Ribeiro, que ganhou a camisa dez, porém sofreu um pouco para se encaixar no 2-3-5 quando a seleção ataca. No Cruzeiro e agora no Flamengo, ele brilha vindo da direita para dentro, fugindo da marcação mais pesada. E precisa de um lateral passando, não de um ponta esperando a bola.

Acabou aparecendo como ponta e cruzando de direita para Lodi preparar e Firmino marcar o gol único. A mais bem sucedida das 11 finalizações brasileiras, sete de dentro da área, apenas três no alvo. Mesmo com 73% de posse e 89% de efetividade nos passes. Muitos deles de segurança, sem arriscar a quebra de linhas, como reclamou o zagueiro Marquinhos na entrevista pós-jogo.

Porque é mesmo difícil correr riscos sem o anteparo do hábito, do treino. Também porque jogador sabe como é a corneta e a patrulha. Do torcedor saudosista e de memória seletiva com a seleção. Que sempre acha a geração fraca e agora reclama da "falta de sintonia com o povo".

É claro que tem razão de se revoltar com o calendário absurdo que não para na data FIFA. Mas passa do ponto ao reclamar até das orientações de TIte, alegando que ele estaria "robotizando" o jogador. Ora, se um dos grandes elogios que Jorge Jesus recebeu em sua passagem pelo Flamengo, e o sucessor Domènec Torrent foi atacado por agir diferente, era justamente a energia no comando da equipe. O estádio vazio logicamente contribui com a captação do áudio pelas emissoras de TV, mas é o trabalho do técnico. Se ficasse quieto no banco seria chamado de "apático"...

Sinto informar que antes mesmo do "novo normal" já era assim e não deve mudar tão cedo. A seleção terá mais jogadores atuando na Europa, porque lá é que estão as ligas mais competitivas. E irão cada vez mais cedo, muitos sem construir a mínima história por aqui, como Firmino, autor do gol da vitória. Porque quem paga mais leva quando quiser e é melhor formar do que investir num atleta que terá que se adaptar a um outro jogo.

Sim, nas principais ligas da Europa se joga um esporte diferente. Mais dinâmico, intenso, rápido. É isso que vamos encarar na Copa do Mundo, especialmente contra as principais seleções europeias. Nada mais natural que os convocados sejam os que enfrentam os melhores do mundo uma ou duas vezes por semana.

Por isso conforme-se. Ou pode se refugiar na internet vendo jogos antigos. Mas cuidado, porque vai tropeçar em muitas "peladas" e alguns vexames do futebol cinco vezes campeão do mundo. 1970 foi único, a exceção. Por isso tem uniforme comemorativo meio século depois.

(Estatísticas: SofaScore)