Topo

André Rocha

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Ramírez demitido no Inter. Jogo de posição "assumido" não vinga no Brasil

Miguel Ángel Ramírez comanda o Internacional contra o Always Ready na Libertadores - Silvio Avila/Getty Images
Miguel Ángel Ramírez comanda o Internacional contra o Always Ready na Libertadores Imagem: Silvio Avila/Getty Images

Colunista do UOL Esporte

11/06/2021 17h35

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

O sonho de longo prazo do Internacional durou 21 jogos. Ou três meses, com jogos, em média, a cada quatro dias. Foram 10 vitórias, quatro empates, sete derrotas. 39 gols marcados, 23 sofridos. 54% de aproveitamento.

Uma ruptura do que era frágil desde o início. Porque a chegada de um treinador estrangeiro com o discurso de trabalho a longo prazo e transformação da maneira de jogar do time veio para suceder uma trajetória épica. Com anticlímax no final do Brasileiro pelo título que antes era improvável, mas ficou a um gol da conquista que não vinha desde 1979.

Com o ídolo Abel Braga no comando. Dentro de uma proposta muito mais alinhada à cultura do futebol gaúcho: time fechado, jogo físico e baseado em rápidas transições ofensivas. Com direito a virada épica no Gre-Nal encerrando um jejum de mais de dois anos sem vitórias no clássico. Sintonia perfeita com o grosso da torcida, apesar das arquibancadas vazias do Beira-Rio.

Não houve nem a pausa para férias e reflexões na virada do ano. O Colorado empatou com o Corinthians e perdeu o título para o Flamengo no dia 25 de fevereiro e já estreava no estadual três dias depois. Com time alternativo e descanso para o grupo principal, mas a transição já começara.

Um processo semelhante ao de Eduardo Coudet no início do ano passado. Mas com férias, pré-temporada, sucedendo um "mandato tampão" esquecível de Zé Ricardo. Necessidade de nível competitivo alto logo no início, por conta das fases preliminares da Libertadores já em fevereiro.

O treinador argentino trabalhava com elementos do jogo de posição, valorizando a posse de bola. Mas o lema, ou uma espécie de símbolo, era outro: intensidade. Refletida no modelo de jogo, especialmente no perde-pressiona. Também no estilo enérgico e elétrico de Coudet à beira do campo.

Mesmo entregando resultados rapidamente com a classificação na fase de grupos do principal torneio sul-americano, sofreu com as derrotas no Gre-Nal. Reveses que eram potencializados pelas provocações de Renato Gaúcho, criando um clima de cobrança constante. Para piorar, os clássicos sem vitórias na Libertadores e depois a perda do título gaúcho.

Um ambiente de pressão que não arrefecia nem com a liderança do Brasileiro e a consolidação de uma maneira de jogar. É claro que a proposta do Celta de Vigo balançaria um treinador que buscava como evolução profissional um trabalho na primeira divisão de uma das grandes ligas da Europa. Mesmo em paz e seguro, Coudet provavelmente partiria para a Espanha. Com a turbulência e a falta de confiança no respaldo da direção colorada, foi a saída natural.

Miguel Ángel Ramírez é espanhol. Ao contrário de Coudet, campeão pelo Racing, não comandou um time grande argentino. Sua história era no Independiente Del Valle, campeão da Sul-Americana de 2019. Depois de trabalhar no Catar, passar pelas divisões de base dentro de um projeto de estruturação praticamente do zero. Sem pressão em um time que está longe de ser um dos mais populares do Equador.

Nos confrontos de maior repercussão do Del Valle com um time brasileiro, duas derrotas contundentes para o Flamengo no Maracanã: 3 a 0 na Recopa Sul-Americana e 4 a 0 na fase de grupos da Libertadores. Mesmo com uma goleada histórica de 5 a 0 em Quito, ficou o estigma de que a proposta de jogo só era bem-sucedida na altitude.

Jogo de posição. Assumido. Em um 4-3-3 que buscava ocupação racional dos espaços, trabalhando amplitude, circulação da bola criando espaços e procurando o homem livre, controle do jogo pela posse de bola. Uma transformação que necessitava de tempo e respaldo. A nova direção, com o presidente Alessandro Barcellos, renovou os quadros que cheiravam a modernidade, inclusive o CEO Giovane Zanardo.

Só que longo prazo é promessa praticamente possível de cumprir no Brasil. Porque time grande brasileiro vive de resultados imediatos para aliviar a pressão de torcida, dirigentes, conselheiros, agora influenciadores. Somos latinos, passionais. Não adianta querer criar um universo paralelo.

Até no River Plate, modelo de trabalho longevo, o treinador Marcelo Gallardo, ídolo do clube, teve um título de Sul-Americana em 2014 e a Libertadores no ano seguinte para pavimentar e criar o mito que resiste a grandes reveses e nenhuma conquista da liga argentina.

Ramirez já chegou sob desconfiança. Até porque jogo de posição no país, na visão geral do torcedor, significa um time estático, previsível, que toca a bola sem objetividade, se arrisca trocando passes na saída de bola e que dá os contra-ataques aos adversários.

Até Guardiola tem seus "haters" no Brasil do jogo intuitivo e direto. Que gosta de treinador que une o vestiário, fecha a casinha, faz o simples, define um time titular e dá liberdade aos mais talentosos. Sem os milhões dos gigantes europeus, a ordem é não inventar e trabalhar com as limitações do elenco disponível.

Junte todo esse cenário complexo a uma sociedade histérica e rachada por uma pandemia que não acaba e ainda é politizada, com o ódio transbordando nas redes sociais. Respingando no futebol com as rivalidades, regionais ou nacionais. A paciência acaba no primeiro meme de zoeira em que o time de coração é o alvo da desmoralização.

Só vitórias salvariam Ramírez. Perdeu Gre-Nal, viu o rival ser campeão gaúcho mais uma vez, na Libertadores terminou como pior líder de um grupo considerado acessível. A pá de cal veio no começo de Brasileiro sendo goleado pelo Fortaleza com um time misto por priorizar a Copa do Brasil e derrota no mata-mata para o Vitória por 3 a 1 no Beira-Rio, depois do triunfo por 1 a 0 em Salvador.

Não importam as expulsões por entradas tresloucadas do jovem zagueiro Pedro Henrique nas duas últimas derrotas. Nem as muitas chances criadas e perdidas na "despedida". Ambiente insustentável, crise sem solução. Dentro do campo, a maior crítica era pela fragilidade defensiva.

Ramírez perdeu também o vestiário. Imagine o jogador médio brasileiro recebendo um técnico "gringo" jovem, sem grande estofo ou muitos títulos. Nem a aura de "paizão", que funciona como um escudo para o elenco.

Propondo uma nova maneira de entender e jogar futebol, sem pensamento mágico ou discursos motivacionais vazios. Sendo detalhista, mas incentivando que os atletas tenham autonomia para tomar decisões. O cognitivo costuma ser limitado, o raciocínio preguiçoso. Mais fácil jogar por intuição ou obedecendo um líder messiânico e autoritário. Como Jorge Jesus no Flamengo, por exemplo.

Não podia mesmo dar certo. E depois do fracasso de Domènec Torrent, fica a lição para outros treinadores, estrangeiros ou não: podem até trabalhar o jogo de posição, mas sem assumir publicamente. Como fez, por exemplo, Rogério Ceni no Flamengo. Pensa como Juan Carlos Osorio, mas nas entrevistas diz que Jorge Jesus é a referência.

Ou então seja um maluco na beira do campo para que isso chame atenção, como aconteceu com Coudet e também Jorge Sampaoli, no Santos e no Galo. Se o foco ficar no modelo de jogo, a chance de ser fritado é enorme. Não há compreensão, nem paciência.

Ramírez acreditou no "projeto", mas no Brasil isso só dura até a partida seguinte. É assim que funciona e não adianta se iludir.

Errata: este conteúdo foi atualizado
Ao contrário do que informado anteriormente, o jejum de vitórias do Inter no Gre-Nal durou mais de dois anos e não três. O erro foi corrigido.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL