Resgate da essência do futebol brasileiro é uma mentira de mais de 50 anos

A maior e mais justa crítica à seleção brasileira em relação à Copa América é por simplesmente ter aceitado jogá-la no próprio país. Não só pela covid e as centenas de milhares de mortes que já seriam motivos suficientes.

Esse discurso enviesado de "patriotismo" que nunca cheira muito bem e empurrou a equipe de Tite para a cilada de se expor a uma derrota em casa para a rival Argentina e enfrentar um clima turbulento a pouco mais de um ano da Copa do Mundo no Catar.

Abrindo espaço para todo tipo de tese mirabolante. Como convocar mais jogadores atuando no Brasil para voltar a conectar a seleção com o povo. Um delírio, já que o calendário aqui não respeita datas FIFA e as torcidas odiariam ainda mais as convocações que esfacelariam os times.

Ou a velha conversa de contratar Pep Guardiola. Como se o catalão fosse largar o universo dos clubes, o cheque em branco para contratar no Manchester City e a competitividade da Premier League para se enfiar numa aventura insana no Brasil da pandemia ainda descontrolada.

Mas o papo mais sem pé nem cabeça é, sem dúvida, o tal "resgate da essência" do futebol brasileiro. Uma mentira que dura mais de meio século. Simplesmente porque essa pureza nunca existiu.

Sempre tivemos influências de fora. Seja de argentinos e uruguaios lá nos primórdios, passando pelo WM de Herbert Chapman, adaptado em 1950 com a "diagonal" de Flávio Costa, até o intercâmbio com os principais jogadores atuando na Europa a partir dos anos 1980.

O Brasil de 1958 teve linha de quatro na defesa por influência do húngaro Béla Guttman sobre Vicente Feola no São Paulo. Sabe o que exportamos da seleção bicampeã para o mundo? Nada de dribles e jogo bonito, mas a função de "falso ponta" executada por Zagallo.

Em 1966, Alf Ramsey tratava Ball e Peters, os dois meias pelos lados que seriam a base do 4-4-2 inglês apresentado para o mundo, como "meus dois Zagallos". Uma solução de equilíbrio defensivo.

A Copa do Mundo na Inglaterra foi também um choque de realidade, com jogo mais físico e tático, que mandou o Brasil para casa ainda na fase de grupos e foi a alavanca para a preparação minuciosa no ciclo até 1970.

Mirando a questão física, mas também a tática. Tanto que, apesar da má vontade com o comunista João Saldanha por parte dos militares que mandavam no país, a saída do jornalista-treinador também teve seus problemas no campo.

Zagallo chegou com uma ideia muito clara e que nortearia o futebol brasileiro por muito tempo: se igualarmos no físico e na tática, vencemos na técnica. A melhor seleção de todos os tempos tinha como lema "atacar como grande, defender como pequeno". Todos no próprio campo sem bola para imitar os europeus e tirar deles o bem mais precioso: o espaço.

Ideia repetida, e não tão bem sucedida, em 1974. Em 1978, Cláudio Coutinho foi acusado de armar uma seleção "muito europeia", baseada em seus conceitos que tinham muita influência da Holanda de 1974. Inspiração assumida por Telê Santana em 1982. O treinador sonhava com uma mistura da mobilidade do "carrossel" com o talento dos nossos craques.

A partir de 1986 o futebol começou a ficar mais globalizado, com o êxodo mais forte, e isso influenciou também nas ideias de jogo. Desde os dois volantes de Telê em 1986, passando pelos três zagueiros de Lazaroni quatro anos depois. Até o tetra com Parreira armando a seleção com duas linhas de quatro bastante rígidas, quase "britânicas". Mazinho e Zinho eram os dois "Zagallos", com o "Velho Lobo" como diretor técnico.

Depois treinador novamente no ciclo criticado pela bagunça tática que culminou na derrota para a França em 1998. Para vencer em 2002 com o talento de Rivaldo e dos Ronaldos na frente, mas Felipão trazendo de volta os três zagueiros que fracassaram em 1990. Como venceu, ninguém falou em "retranca à italiana".

Em 2006, a seleção mais "europeia". Cafu, Roberto Carlos, Kaká, Ronaldinho, Robinho, Adriano, Ronaldo...Todos inseridos no futebol do Velho Continente que começou a construir a hegemonia de quatro títulos mundiais seguidos: Itália, Espanha, Alemanha e França.

E Tite lutando para formar uma seleção competitiva, agora com ciclo de quatro anos. Buscando soluções para dar liberdade a Neymar, mas fazer com que a participação maior do camisa dez na criação não torne a equipe tão dependente. Sofrendo com a má fase de Firmino e a ausência de Gabriel Jesus nas quartas contra o Chile que tirou o atacante da Copa América e empurrou Everton Cebolinha em má fase para o time titular.

Mas descobrindo Paquetá como solução viável no meio. Ainda esperando a evolução de Gerson no Olympique de Marseille e a recuperação de Philippe Coutinho para entregar mais qualidade no trabalho entre as intermediárias. Com entressafra nas laterais e Richarlison sobrecarregado na frente.

Mesmo com todos os problemas, o Brasil está no bolo de candidatos ao título no ano que vem. O maior obstáculo, por ironia, é justamente a falta de amistosos contra os europeus. Na contramão dos puristas que querem um jogo menos influenciado pelo que vem de fora. Uma espécie de xenofobia que não faz sentido no mundo interconectado.

O jogo está cada vez mais tático, físico e coletivo. Como em 1966, guardando as devidas proporções. Propor um estilo mais cadenciado, "jogando e deixando jogar" e baseado no improviso provavelmente teria o mesmo resultado de 55 anos atrás: um retumbante fracasso.

Exigir da seleção vitórias com espetáculo o tempo todo é uma incoerência histórica. O Brasil teve dois períodos de maior ascendência no futebol de seleções: entre 1958 e 1970, com o hiato em 1966, e de 1994 a 2006, sem conseguir fechar o ciclo com a conquista do hexa na Alemanha. Para vencer cinco das 21 copas.

Para o brasileiro, porém, a seleção só perde pra ela mesma. Nunca há mérito do outro lado, nem quando o rival é Lionel Messi. Na prática, porém, nosso futebol sempre aprendeu com o mundo. E as soluções criadas aqui também influenciaram os europeus. Como deve ser.

A nossa arrogância não faz sentido, assim como o complexo de vira-latas de Nelson Rodrigues também é contraproducente. A seleção deve seguir com Tite e o entendimento de que todos os centros se desenvolveram e o cenário é de maior equilíbrio. Sem soluções mágicas ou o delírio coletivo que nada acrescenta.