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No futebol racista, ter os genes certos pode fazer a diferença

Aranha é o novo colunista do UOL Esporte - Divulgação
Aranha é o novo colunista do UOL Esporte Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

24/07/2020 04h00

Não está fácil para os amantes do futebol e os apaixonados pelo seu clube atravessar este momento anormal.

Quem respira futebol e até os poucos brasileiros que não gostam ou não acompanham já devem estar morrendo de saudades dos gols e das entrevistas cheias de pérolas dos jogadores, dos debates intermináveis sobre um pênalti ou um gol, das discussões sobre erros e acertos da arbitragem, etc. Mas a pandemia, com suas taxas de contaminação e mortes crescentes, tem tomado conta dos noticiários.

Além da Covid-19, também estamos enfrentando outra pandemia, que já dura algumas centenas de anos e vem causando muitas mortes, além de prejudicar muitas pessoas no Brasil e no mundo.

Essa doença é o racismo. O racismo deveria ser tratado como uma doença, que precisa ser detectada e tratada. Mas o que eu, amante do futebol, tenho a ver com isso? O que eu quero é bola na rede e ver meu time vencer, ser campeão e tirar um sarro com meus rivais. O que o racismo tem a ver com isso?

Na estrutura racista do futebol, ter os genes certos pode fazer a diferença. Não é de agora que os brasileiros têm reclamado do futebol da seleção, mas principalmente dos times. O que se ouve muito é que o nosso futebol está nivelado por baixo. O mercado europeu é o mais atrativo dentro e fora de campo. Clubes brasileiros buscam na base garotos com perfil para uma possível venda futura, e eles são vendidos cada vez mais cedo.

Como a maioria dos campeonatos europeus limita o número de não-europeus que cada clube pode ter em campo, um critério muito importante na base brasileira passou a ser a possibilidade do garoto ter um passaporte europeu. E tem quem tem mais chance de ter passaporte europeu é quem tem genes europeus.

Sempre existem exceções. Por mais que um brasileiro leve vantagem por ter passaporte europeu, um craque, alguém com talento acima da média, mas sem passaporte, pode ainda assim romper barreiras.

Mas a barreira da origem e da cor da pele ainda está lá. No Brasil e na Europa, existe uma resistência a goleiros negros, assim como a treinadores negros. Para entender melhor é preciso olhar para atrás, no início do futebol.

Vindo da Inglaterra, trazido por Charles Miller, em 1895, para uma elite branca, o futebol seria um esporte nobre, praticado pela alta sociedade. A escravidão tinha acabado (no papel) apenas sete anos antes, em 1888, e a maioria dos negros não sabia ler. Eles eram vistos como primitivos, incapazes, entre outras coisas.

Os times de futebol eram formados nos clubes da alta sociedade, o que impossibilitava a participação dos negros que ainda lutavam pela própria sobrevivência. Enquanto o futebol entrava no gosto popular, as estratégias racistas foram sendo montadas.

Os clubes vetavam o profissionalismo, então os negros não podiam receber pra jogar, o que tornava o futebol um esporte exclusivo de quem já tinha uma condição melhor.

Mais à frente, quando os clubes já aceitavam jogadores negros, um decreto do então presidente Epitácio Pessoa proibiu a participação de jogadores negros na seleção brasileira. A ideia era passar uma imagem embranquecida da população, já que a seleção faria uma excursão fora do Brasil.

Friedenreich - Centro Pró-Memória do Paulistano - Centro Pró-Memória do Paulistano
Friedenreich (ao centro) foi o maior destaque dos títulos de 1918 e 1919 conquistados pelo Paulistano
Imagem: Centro Pró-Memória do Paulistano
Mas o Brasil teve péssimos resultados atuando apenas jogadores brancos. O craque do time era Arthur Friedenreich, um dos maiores da história do nosso futebol. Apesar do sobrenome alemão, Friedenreich era brasileiro, filho de uma mulher negra com um homem branco de origem germânica.

Uma mobilização popular fez com que o decreto de Epitácio Pessoa caísse, porque o Brasil teria pela frente uma Copa América em casa, e o povo queria Friedenreich na seleção. E, de volta, ele não decepcionou. O Brasil foi campeão e ele artilheiro, considerado o melhor jogador da competição. Era o início da história gloriosa da seleção brasileira.

O racismo no futebol continuou sendo de alguma maneira controlado, até chegar a Copa de 1950, a primeira realizada no Brasil. Na derrota na final para os uruguaios, que fizeram dois gols no nosso goleiro, Barbosa (negro) foi a brecha que os racistas usaram para tentar novamente tirar os negros do futebol.

Por pouco o racismo não tira da seleção grandes jogadores negros. Para não ser injusto com eles citarei apenas um: Pelé.

De 1958 até 2020 são incontáveis os jogadores negros que contribuíram para a seleção ostentar sua coleção invejável de títulos. O racismo "normalmente" é invisível, mas volta e meia mostra sua cara causando até um certo espanto, já que é imperceptível para a maioria.

Proponho uma reflexão: seu clube já teve um presidente negro? E um treinador negro? E se teve um treinador negro, as críticas que ele recebeu foram na mesma medida das que receberia um treinador branco? Como seria a história do seu clube sem a participação dos negros?

Não dá para pensar em um Santos sem Pelé e sua camisa 10, ou sem aquela pedalada histórica de Robinho em 2002, ou sem a ousadia e a alegria do camisa 11 Neymar. Imagine o impacto da ausência do negro na história do São Paulo, do Palmeiras, do Corinthians ou em qualquer grande time do Brasil.

Não falo de racismo, falo de futebol. Não é acaso que o primeiro presidente negro de um clube de futebol, Sebastião Arcanjo, da Ponte Preta, só veio a assumir o cargo em 2019, 124 anos depois da chegada do futebol no Brasil.

A contribuição negra ao futebol é fundamental. Imagine nas outras áreas. O quanto o Brasil poderia ter avançado se permitisse o crescimento e a colaboração da população negra.

* Com colaboração de Augusto Zaupa