Capoeira é símbolo de luta e resistência negra
Recentemente, estava andando pelo bairro São João, na cidade de Pouso Alegre (MG), onde fui criado e passei parte da adolescência antes de sair para iniciar a minha carreira no futebol, e encontrei um conhecido de infância. Não chegava a ser um amigo próximo, mas ele me reconheceu e perguntou: "você se lembra de mim?"
Disse que sim, que recordava. Conversamos sobre futebol e outros assuntos, e ele, então, me revelou que estava dando aulas de capoeira em um projeto no centro.
Logo fui para casa e comecei a pensar como as coisas mudaram e o que estava acontecendo com a capoeira. Ela migrou exclusivamente para as grandes academias e para grupos famosos. Hoje, se você perguntar, a maioria das pessoas precisa da internet para saber onde praticar este esporte.
Na minha infância no bairro São João, que fica na periferia e continua sendo uma região simples de Pouso Alegre, a capoeira era o lazer da garotada, assim como o futebol e o hip hop. Íamos ao Licanor, um grande terreno baldio com gramado, porque o bairro fica longe do centro e não oferecia nenhum tipo de lazer ou ocupação aos jovens.
Havia apenas o Cantareira, time do bairro que dava treino para a garotada uma vez por semana, além da catequese. Mas isso era apenas aos finais de semana, nos demais dias era o Licanor ou algum rio próximo em época de calor.
Esta conversa com o meu amigo me chamou a atenção. Se tem uma modalidade esportiva que mais representa o Brasil no mundo, é a capoeira. É um esporte legitimamente brasileiro.
Em 2014, a Unesco (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura) declarou a roda de capoeira como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. A capoeira se tornou a quinta manifestação cultural brasileira reconhecida por este órgão. Seis anos antes, a capoeira já havia sido reconhecida como patrimônio cultural do brasileiro pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).
E o futebol? O futebol, assim como o vôlei e outros esportes, representam muito bem o Brasil. Porém, o futebol veio da Inglaterra, e o brasileiro colocou a sua ginga e sua classe e, atualmente, domina a modalidade ao ser o maior campeão de Copas do Mundo, com cinco títulos.
A capoeira ganhou o mundo e é praticada em todos os continentes. As pessoas sabem que é um esporte ligado à cultura brasileira e, por isso, temos mestres ensinando esta arte em vários países.
No Brasil, esta cultura tem vivido uma espécie de apropriação cultural. É possível notar cada vez mais a ausência de mestres e professores negros, inclusive, alunos negros. Este fenômeno de pessoas não negras se graduando, praticando e até ensinando o esporte é ótimo para a nossa cultura, principalmente por ser algo que nasceu da raiz negra e que tem um grande significado para nós.
Este fenômeno é importantíssimo para se romper a barreira do racismo. Mas se tratando do Brasil, é preciso estar atento à estrutura e às armadilhas do racismo, pois logo não teremos mais negros na capoeira nem mestres negros.
Devido à dificuldade de encontrarmos professores negros da modalidade em academias, a juventude negra também vai perdendo o interesse nesta cultura. Isso é como o caratê sem japonês ou o kung-fu sem o chinês.
A capoeira está na raiz da cultura negra brasileira. Aliás, a cultura e os costumes eram as únicas coisas que vinham com os africanos e não tinha como tirar isto deles. Poderia, sim, impedi-los de usar ou praticar, mas não tinha como arrancar algo que estava dentro deles.
Um grupo vindo da Angola, denominado bantu, costumava fazer o jogo da zebra, ou como diziam N'golo. Era um ritual de passagem para a fase adulta ao imitarem coices de zebra. O vencedor escolhia uma moça para se casar. Mas, como no Brasil quem escolhia os pares para os casamentos ou procriação eram os que escravizavam, o costume se tornou uma brincadeira de criança.
Logo foram inseridos novos golpes, como o rabo de arraia que passou a ser conhecido como jogo de Angola por sua origem.
Foi então que os escravos começaram a utilizar a capoeira na autodefesa e em busca da liberdade. Alguns conseguiam golpear os capatazes e fugir mata a dentro. Às vezes, a violência dos golpes era fatal. Mas quando o perseguidor conseguia voltar, logo dizia: "fui surpreendido e atacado na capoeira (tipo de vegetação).
O nome, então, foi incorporado à luta, que foi proibida e perseguida até 1937 — apenas 49 anos depois da abolição da escravidão.
Foi neste cenário de criminalização e perseguição da capoeira que surgiu um personagem que mudaria tudo: o mestre Bimba. Nascido em Salvador, Manuel dos Reis Machado, seu nome de batismo, adicionou o batuque (uma luta nordestina extinta), movimentos rápidos e música para criar a capoeira regional.
Aos poucos, foram introduzidos instrumentos musicais, como berimbau, atabaque e pandeiro. Assim, a capoeira ganhou, inclusive, outros estilos: angola, contemporânea e regional, cada um com as suas particularidades.
Desta forma, a capoeira conquistou e conquista adeptos até os dias de hoje.
* Com colaboração de Augusto Zaupa
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