Revisitando Nelson Rodrigues e a irremovível paixão pelo futebol brasileiro
Nelson Rodrigues detestava viajar. E viagem, para ele, era qualquer deslocamento que o tirasse, ainda que apenas alguns quilômetros, de seus lugares habituais no Rio de Janeiro.
Em crônica que escreveu em 1955 para a Manchete Esportiva, Nelson contou sobre um jogo de seu Fluminense que ele foi ver na rua Bariri. Logo na segunda linha, vinha a confissão: "...sempre considerei Olaria tão longínqua, remota, utópica como Constantinopla...".
Na sequência: "Já na avenida Brasil, comecei a sentir uma nostalgia e um exílio só comparáveis aos de Gonçalves Dias, de Casemiro de Abreu".
E conclui: "...recrudesceu em mim o ressentimento contra qualquer espécie de viagem".
O Fluminense não era, porém, o único incentivo para Nelson tolerar sair de seu território; também Botafogo, Vasco e Flamengo o moviam para longe do conforto. No Maracanã, ele testemunhava comédias e dramas que, depois, viravam arte em seus textos. Ia ao Mário Filho, ao "maior do mundo", também, é claro, para assistir à seleção ou ao Santos dos tempos de Pelé (Em 1964, Nelson escreveu que o Santos "é o mais carioca dos times").
Aliás, foi Nelson Rodrigues o primeiro a chamar Pelé de rei - e o fez meses antes dos jornalistas franceses que usaram tal tratamento ao verem o garoto de 17 anos na Copa de 1958, na Suécia.
O ânimo para Nelson Rodrigues deslocar-se vinha do futebol; antes, vinha de sua paixão pelo futebol brasileiro. Intelectual de verdade, gênio da crônica, Nelson dizia que "...o intelectual brasileiro que ignora o futebol é um alienado de babar na gravata".
Ele viu Leônidas, Domingos, Heleno, Zizinho, Djalma Santos, Ademir, Didi, Zito, Mauro, Nilton Santos, Dino, Julinho, Evaristo, Almir, Pepe, Garrincha, Zagallo, Pelé, Coutinho, Ademir da Guia, Rivellino, Clodoaldo, Carlos Alberto, Gerson, Jair, Dirceu Lopes, Tostão e muitos outros jogadores formidáveis, e não tinha dúvida de que o futebol brasileiro é o melhor do mundo. E continuava com tal certeza mesmo depois de derrotas da seleção brasileira, incluindo a final da Copa de 1950.
Dias antes da Copa de 1958, garantiu: "A pura, a santa verdade é a seguinte: qualquer jogador brasileiro, quando se desamarra de suas inibições(...), é algo único em matéria de fantasia, de improvisação, de invenção. Em suma: temos dons em excesso".
Semanas depois, com o Brasil campeão mundial pela primeira vez, a crônica de Nelson para a Manchete Esportiva teve o título 'É Chato Ser Brasileiro!' e dizia: "Graças aos 22 jogadores, que formaram a maior equipe de futebol da Terra em todos os tempos, (...) o Brasil descobriu-se a si mesmo".
Em 1970, quando a seleção, ainda atordoada com as vaias recebidas nos amistosos contra Bulgária e contra Áustria, iria embarcar para o México, Nelson soltou: "O escrete parte hoje. Termina o seu exílio e, se não ouviram bem, repito: o seu exílio era o Brasil". Havia pessimismo com a seleção, mas Nelson, mesmo indignado com a demissão de João Saldanha, disse que iria ao aeroporto e falaria aos jogadores: "Vocês já são campeões do mundo".
A confiança exacerbada, inabalável, era um tipo de antídoto ao "complexo de vira-latas" (expressão que ele mesmo havia tirado da cartola, ainda como reflexo da derrota para o Uruguai em 50). O futebol brasileiro, repleto de heróis, lhe parecia uma espécie de redentor da pátria.
O pernambucano Nelson Rodrigues, que mudou-se ainda criança para o Rio e foi inapelavelmente um carioca, morreu em 1980, depois de viver por 68 anos. Escreveu crônicas únicas sobre a vida, e os costumes, e o cotidiano de dramas, tragédias e comédias; viu o futebol desde uma perspectiva inédita, irremediavelmente humana e épica.
Hoje, o futebol brasileiro, irremovível paixão de Nelson Rodrigues, está a depender de um único e escasso craque.
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