Gustavinho Lima: Sonho de criança e a hora de dizer adeus
Como assim parar de jogar? Eu só fiz isso da minha vida. Está no meu corpo, hoje eu sou uma parte basquete, sempre fui o "Gustavinho do basquete". É difícil dizer adeus, sempre preferi o "tchau", o "até logo" e até mesmo o "falou, valeu".
Sabe aquela máxima de que o atleta morre duas vezes, a primeira quando para de jogar? Então, a morte tem sido paciente comigo. Como se jogasse xadrez e esperasse o resultado para saber se me leva. Cada movimento no tabuleiro vem carregado de medo.
O meu coração de gelatina não aguenta o tom de despedidas.
Quase atingi a maioridade, mas não a maturidade. Após dezessete anos de carreira continuo com a mesma alegria genuína de menino, vivendo a paixão irresponsável, pedindo por mais cinco minutos quando o zelador vem apagar as luzes do ginásio.
Uau, Dezessete!
Nem nos maiores sonhos eu poderia imaginar vestir a 10 e ser capitão do Timão. Ainda por cima levantar a taça de campeão e levar o Corinthians, após 22 anos, de volta à elite do basquetebol brasileiro.
Não fui o maior craque, mas sem dúvida fui um dos mais corajosos. Do alto dos meus 1.78 disputei com toda a garra as bolas que pareciam perdidas. Dei raça e amor à camisa por onde passei. Deixarei as quadras, mas certamente não o basquete. Parafraseando Chico Buarque, o basquete ficou no meu corpo feito tatuagem para me dar coragem de seguir viagem.
Ainda me recordo da minha iniciação esportiva, na Med Sport, uma baita escolinha em que meninos e meninas atuavam juntos nas aulas, e nas quais que não se podia escolher o esporte praticado. A ideia era passar pelas mais variadas modalidades, e foi assim desde os meus 5 anos até a formatura, aos 11.
De lá fui pro Pinheiros a convite do Beco, professor da escolinha que também era técnico no clube. Beco foi meu pai no basquete. E, como todo bom pai, vivemos momentos incríveis, vitórias mil, mas também fui o que tomava mais broncas dele, sem dúvida. E eu mereci cada uma delas. Como eu já me destacava por ser mais rápido e habilidoso do que a grande maioria, vira e mexe eu achava que podia tudo. Hoje vejo como cada momento ajudou não só na minha formação como atleta, mas também como pessoa.
Confesso que cresci.
Aprendi o que é o basquete competitivo nos meus anos de Esporte Clube Pinheiros. Trabalho em equipe, disciplina, aprender a lidar com vitórias, derrotas e trabalhar sob pressão foram sendo inseridos aos poucos na minha bagagem.
A inclusão no esporte acontece de forma direta. As crianças normalmente são mais livres de preconceitos e abertas a conceitos de solidariedade. A aceitação é parte fundamental do esporte. E, no basquete, o cenário é ainda mais interessante. A regra é que o negro é melhor do que o branco. Quase todos os melhores da história são negros. Na minha opinião essa superioridade é basicamente incontestável.
Minha primeira briga por direitos iguais foi aos 18 anos, quando o recém-chegado diretor do clube resolveu que mudaria a forma de pagamento e ficaríamos sem receber nas férias. Tentei sem sucesso convencê-lo do contrário. Então, escrevi um manifesto contando com a assinatura de todos os atletas do clube para mostrar força e união na modalidade. A decisão foi revogada e pudemos tomar nosso sorvetinho nas férias.
Aquela verve questionadora não cessou em mim e muito me orgulho de ter vestido a camiseta em homenagem a uma das mulheres mais importantes da política, vereadora eleita e defensora de bandeiras fortes, minorias e dos direitos humanos, que fora brutalmente assassinada. QUEM MATOU MARIELLE?
Procurei agir pensando no coletivo por todas as equipes que passei. Muitos diziam que eu posicionava porque não tinha família para sustentar. O que não é verdade. Eu corri riscos, mas procurei agir de acordo com valores éticos e morais. Lutei pra discordar de Shakespeare "A consciência faz de todos nós covardes", afinal o que a vida espera da gente é coragem.
Sem cortes na cultura
Uma das maiores dificuldades que enfrentei no esporte foi romper com estereótipos. Com cabelo mais comprido, cara meio de argentino, e barba por fazer enfrentei a desconfiança de muitos treinadores. Por frequentar cinemas, teatro e livrarias, achavam que eu era "cult" ou intelectual demais para ser jogador. Que bobagem! Um dos meus maiores medos sempre foi ser mal compreendido.
Certa vez ao chegar para um treino extra, eu carregava um livro sobre cinema nas mãos. Fui super criticado pelo meu técnico na época, que disse que era perda de tempo e que podia estar lendo algo sobre basquete. Tentei argumentar sobre o valor dos livros de variados estilos. De um possível subversivo, terminei o papo um pouco constrangido dizendo que só lia porque queria aprender coisas diferentes.
Durante as viagens longas para o interior de São Paulo, costumava levar filmes para assistir no ônibus, curadoria eclética entre clássicos e novos. Certa vez, aquele mesmo técnico, ao ver Hitler ser queimado no cinema em "Bastardos Inglórios" veio me perguntar se o filme era baseado em fatos reais.
Laços de família
Tive a sorte de ter uma família que me apoiou muito na decisão de me tornar profissional de basquete. É pouco usual pais incentivarem os filhos ao esporte, à música ou às artes. Enxergo essas áreas como grandes agentes na transformação de uma sociedade, por isso sou eternamente grato ao meu pai e minha mãe por terem me dado todo o suporte necessário.
Sou grato também pela cobrança. Minha mãe ficava louca quando eu perdia um lance livre: "você só faz isso da vida, menino. Não pode errar". Com sua simpatia ímpar ficou conhecida nas arquibancadas por onde passou. Não importava a distância, lá estava a Dona Glória a torcer pelo seu primogênito.
Meu primeiro ídolo foi meu irmão mais novo. Desprendido, comunicativo e matador de bola de três. Mesmo sem ter os dedos de uma mão, nunca se fez de vítima e dava baile. Se bobear, ele mata mais bola do que eu até hoje. Foi campeão paulista invicto no juvenil. Jogamos muito 1x1 e conversamos uma vida sobre o jogo. Hoje, como preparador físico, é quem fazia a minha pré-temporada.
O núcleo familiar se expandiu, conheci a mulher que mudou a minha vida. A Aninha, caso antigo de colégio, reapareceu na hora certa com todo seu companheirismo, carinho e paixão. Deu o rumo necessário para eu viver e acreditar no meu sonho de viver de basquete. Me apoiou inclusive quando tive de partir para jogar em outras cidades, e sempre foi parceria independente da distância.
Trabalho ou diversão
Passei horas de bermuda, regata e tênis. E tem coisa melhor do que esse uniforme de trabalho? Fui muito feliz por todos os clubes em que passei. Treinei muito para evoluir! Mas a empatia com técnicos me ajudou a ficar tanto tempo em atividade. O basquete é muito competitivo e, da minha geração 85, menos de 10 atletas jogaram por mais que 5 anos em alto nível.
Com dezesseis anos, eu era o mais jovem inscrito num campeonato profissional. Começava aí minha trajetória como jogador profissional de basquetebol.
Isso começou lá da arquibancada. Babando como um cachorro que olha para os frangos de padaria, não perdia um treino do adulto. Até que, num belo dia, o técnico Marcel me chamou para completar um treino. Abusado, fui pra cima e não fiquei intimidado com as trombadas dos "velhos de 33 anos". O campeão Pan Americano de 87 gostou do que viu e me inscreveu no Campeonato Paulista Adulto de 2001.
Alguns anos mais tarde, no primeiro ano de adulto, foi a primeira vez que morei fora da casa da minha mãe. Aos 19 anos, o técnico Alberto Bial simpatizou com minha energia defensiva e coragem dentro de quadra e me deu a titularidade. Eu era o jogador mais novo a ser titular na liga nacional.
De lá para cá, participei de um projeto ambicioso do Pinheiros em uma parceria com Santo André e um coach a frente de seu tempo: Luís Carlos Gianini, vulgo Pizza, um entusiasta dos arremessos de longa distância muito antes da revolução das bolas de 3 a lá Golden State Warriors.
Senti o reconhecimento e o carinho de milhares de torcedores do Mogi, quando a convite do Marcelinho Rato aceitei encabeçar um projeto de um time que se encontrava na segunda divisão e, quatro temporadas depois, jogava a final do campeonato Sul-Americano. Lá trabalhei com o melhor coach que já tive. Recém-chegado da Espanha, Paco Garcia nos falou que não falava inglês nem português, mas a língua universal do basquete. Eu não tinha com o que me preocupar. Foi uma época mágica da minha vida, onde fiz amigos para a vida toda, tamanho era o envolvimento da equipe.
Também fui muito bem acolhido no Sul do país. Projeto sério, ginásio lotado, estrutura impecável. Voltei a ter protagonismo no Caxias do Sul, estreante no NBB onde, como capitão, pude liderar o time a alcançar a inédita classificação aos playoffs por um time novato.
Do Rio Grande do Sul fui parar no Ceará. Uma grande chance de viver culturas e povos distintos e crescer através dos diferentes tipos de situações. Senti as raízes de José de Alencar e me deixei contagiar com a alegria do nordestino. O Basquete Cearense foi intenso, onde o ginásio ficava abarrotado para torcer pelo seu Carcará!
O basquete realmente proporciona oportunidades sensacionais. Conheci a Tailândia, o México, a China, a Argentina e o Uruguai, além de diversas cidades pelo Brasil.
Como num roteiro de filme, recebi a proposta para atuar pelo meu time de coração. Depois de muito tempo nas arquibancadas do Pacaembu e, recentemente, da Arena Corinthians, foi de arrepiar ter toda essa euforia da Fiel apoiando o meu time e gritando "é Gustavinho". Feliz demais pela confiança que o coach Savignani depositou em mim para que eu liderasse a equipe. Tive a ajuda de um grande mentor, com duas olimpíadas nas costas, que já vestiu a 10 alvinegra. Eduardo Agra me estimulou a agarrar a chance do clube mais brasileiro.
Por isso, preciso dizer: Obrigado, Basquete. Sou loucamente apaixonado por você!
Adeus, Gustavinho.
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