Talvez Sampaoli faça falta, mas Santos enfrentou recomeços mais difíceis
Sampaoli é bom treinador, mas sua saída não é dano irreparável, nem altera coisa alguma do que o Santos é. Nenhum técnico, ao pegar o boné, provocaria tal efeito. O Santos já sofreu perdas incomparavelmente maiores, e isso não arranhou sua grandeza.
A grande prova, fundamental, decisiva, foi há quase meio século. Dali a três semanas Pelé faria 34 anos. Ainda havia gols a serem feitos, dois ou três lances a serem inventados. Mas Pelé queria parar, talvez por não admitir qualquer coisa inferior ao que ele havia realizado desde 1956, quando conheceu a Vila Belmiro.
As últimas horas do segundo dia de outubro de 1974 encontraram gente perplexa, saudosa antes mesmo de haver tempo para se construir saudades. O jogo contra a Ponte, a Vila das antigas, o rei se ajoelhando, o fim do caminho, o termo de uma era. Torcedores do Bangu ou do Moenchengladbach, corintianos, palmeirenses, são-paulinos, adeptos do Sporting ou tifosi da Juventus, todos sabiam que o futebol, naquela noite de outubro, perdia seu norte de excelência. Encontraria outras referências, outros fenômenos; mas alguns talentos são irrepetíveis.
Pelé, nos anos seguintes, disputou amistosos — inclusive com a camisa do Santos—, jogou pelo Cosmos, deu o impulso possível ao futebol nos Estados Unidos, passou por Hollywood e impediu que seu prestígio mundial fosse diminuído pela aposentadoria. Aquela partida contra a Ponte, porém, de fato foi o desfecho da carreira inigualada, provavelmente inigualável.
Amsterdã, Roma, Tirana, Londres, Buenos Aires, Moscou, Montevideo, Tóquio, em qualquer canto sabiam todos que o rei ajoelhado no campo da Vila indicava o fim de um período histórico. Mas é claro que os santistas experimentaram sentimento especial, exclusivo, esquisito; e remoeram dúvidas e aflições.
O último título de Pelé com a 10 do alvinegro foi no estadual de 73, conquista dividida com a Portuguesa depois de Armando Marques, confuso, nervoso, falhar na aritmética e embaralhar a disputa por pênaltis. No outubro de 74, torcedores santistas, ensimesmados, lançavam a pergunta: "Sem o melhor da história do futebol, o clube continuará levantando taças?".
Talvez acreditando que era preciso um recomeço radical, ou talvez mergulhando no mecanismo de aprofundar a ruptura para não se prender irremediavelmente ao passado, a diretoria do Santos viu outros craques irem embora: Cejas foi para o Huracan, antes de retornar ao Brasil para defender o Grêmio; Carlos Alberto voltou para as Laranjeiras, lá onde o Santos foi buscá-lo em 64.
Dos jogadores emblemáticos da segunda e derradeira etapa do reinado, só Clodoaldo estava no time que venceu o Paulista de 78, o primeiro título depois dos tempos de Pelé. E Chico Formiga juntou Clodoaldo, Lira e Pita em memorável meio-campo; e com Batata, Juary e João Paulo, alentou a ideia de o Santos ser canteiro de talentos, tanto os nascidos na Vila quanto os recém-formados em outros clubes.
Aquele time do Formiga deu respostas rápidas e convincentes às perguntas, dúvidas e desconfianças que a despedida de Pelé produziu nos santistas. O recomeço era real e promissor. Depois do adeus de Pelé, o Santos conquistou Libertadores, Recopa Sul-Americana, Copa Conmebol, dois campeonatos brasileiros, uma Copa do Brasil e nove estaduais.
Não acredito que apareça, no Brasil ou em outro lugar, um time que se aproxime do que fizeram Gylmar, Lima, Mauro, Calvet, Dalmo, Zito, Mengálvio, Jair, Dorval, Pagão, Coutinho, Pelé e Pepe. Aquele esquadrão não é a meta possível para o Santos ou para os outros clubes. O Santos também não terá mais um elenco como o que reunia Carlos Alberto, Ramos Delgado, Joel, Cláudio, Clodoaldo, Toninho, Rildo, Negreiros, Djalma Dias, Abel, Edu e Pelé. Mas os outros clubes também não terão. Desde aquela noite, daquele incômodo embate, o Santos percorreu 45 anos, enfrentou fracassos, ganhou muitos troféus, descobriu craques, sofreu alguns desastres administrativos, experimentou, enfim, o que todos os outros clubes relevantes também experimentaram.
Desde sua mais importante perda, o Santos atravessou crises e conquistas, esbarrou aqui e ali, recuou e avançou, mas permaneceu grande. Não deixou de ser o que é, o que sempre foi, nem mesmo ao ficar definitivamente privado do melhor jogador da história do futebol. A saida de um treinador não mudará isso.
Sampaoli fez um trabalho muito bom no campeonato brasileiro, e a falta de títulos não apaga coisa alguma. Considerando os sucessos e os fracassos de sua carreira, pesando, ponderando, a conclusão é que ele é bom treinador. Principalmente, Sampaoli tem boas ideias, e por causa delas é que ele tem sido bem avaliado no Brasil, assim como foi no Chile.
Treinando o Santos, escalando e mudando o time, Sampaoli cometeu alguns erros importantes, mas acertou muito mais do que errou. E seu acerto primordial foi o modo de jogar que ele propôs e que os jogadores realizaram. Sua saída não surpreendeu. Foi precedida de arengas, desencontros, pronunciamentos, desgastes notórios. Sampaoli partiu, mas a ideia pode permanecer na Vila, bastando que seja compreendida e apreciada por quem suceder ao argentino. E talvez sem a inclusão dos erros que apareceram vez ou outra.
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