Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Por que frases de Zé Elias e Sormani refletem o racismo nosso do dia a dia
Sabe aquela brincadeira comum entre crianças em que em um momento de descontração na roda, sobe um cheiro desagradável, e alguém fala: 'Quem soltou um pum está com a mão amarela'? Invariavelmente, o flatulento se denuncia ao olhar a própria mão. Pois bem, a analogia é perfeita para contar o que aconteceu durante a discussão envolvendo os jornalistas Pedro Ivo Almeida e Fábio Sormani e o ex-jogador Zé Elias. O caso aconteceu nesta segunda-feira, na transmissão ao vivo do programa "F90", da ESPN.
Zé Elias exemplificou o excesso de tatuagens para justificar a perda de foco de jovens jogadores, posição que ganhou o apoio de Sormani, que citou ainda os dreads do palmeirense Danilo. O jogador Patrick de Paula, que tem uma tatuagem na coxa e já platinou os cabelos, também foi citado. Ambos negros. Coincidência?
Ao ser confrontado por Pedro Ivo, que apontou ser um caminho "perigoso" condicionar certos símbolos, como cabelo e tatuagem, ao desempenho em campo, Zé Elias se acusou. O ex-jogador rebateu o jornalista, dizendo que Pedro estava "levando para o lado do preconceito".
A discussão, que tomou quase 14 minutos do programa, chegou a ter frases como "Eu tenho amigos negros", dita pelo ex-volante.
Pessoas brancas dizem essa frase como uma salvaguarda de que não são racistas. A verdade é que a frase em si já é carregada de preconceito. Afinal, nós, pessoas negras, não somos "escudo" de ninguém que está praticando um ato racista. Além disso, ter "amigos negros" não é garantia de não vai apontar o dedo para outra pessoa negra e despejar sobre esse corpo os milhares de estereótipos racistas enraizados na sociedade, que, lembre-se, é estruturalmente racista.
A verdade é que o racismo é tão cruel que os negros não podem errar. Quando um negro erra, ele é destituído de sua individualidade como ser humano — passíveis de erros e acertos — e vira a representação de uma população inteira. Quem nunca ouviu a frase "Ah, tinha que ser preto"?
Com Danilo e Patrick de Paula não é diferente. O "foco" citado por Zé Elias e Sormani não se refere apenas aos dois jogadores. Se refere ao conjunto de jogadores pretos. Afinal, ninguém questionou a "perda de foco" em relação ao braço fechado de Messi ou à conhecida vaidade de Cristiano Ronaldo.
As tatuagens e os penteados simbolizam, sim, códigos culturais, que devem ser respeitados. Não é segredo nenhum que o futebol (ainda) é uma das poucas formas de ascensão social de crianças pretas e periféricas, que, muitas vezes, traduzem o seu pertencimento na aparência.
As tranças, os dreads, os black powers não são apenas códigos estéticos. Há todo um simbolismo cultural e que reflete também a realidade em que essas pessoas estão inseridas. Estamos em um momento de resgate da cultura negra, que é traduzida nestes símbolos.
Na década de 1970, Reinaldo, ídolo do Atlético-MG, desafiou a ditadura militar e o racismo com seu cabelo black power e o seu punho erguido. Por fazer o gesto, na comemoração pelo gol na estreia do Brasil na Copa de 78, Reinaldo perdeu a titularidade e não foi convocado para a Copa do 82.
Quando um atleta como Danilo exibe os dreads, ele está usando sua visibilidade para passar uma mensagem de orgulho e aceitação a outros jovens negros, como ele. Além disso, como muito bem colocou minha colega Eliana Alves Cruz, colunista do UOL, cuidar da aparência "pode fazer um bem enorme para o atleta. Se está numa fase ruim isso não tem a ver com a preocupação com o cabelo. É uma ideia louca que ainda reina em certas mentalidades, de que um atleta não pode respirar outra coisa que não seja o esporte que pratica. Isso é desumano", diz.
Aqui entramos em outro debate crucial: os corpos de atletas negros — e isso reflete a sociedade como um todo — não são vistos de outra maneira, além de máquinas de resultado, de entretenimento e de fazer dinheiro. A cobrança pelo foco está camuflando justamente a visão escravocrata de que não devemos ter outros interesses além do trabalho. Lembremos os casos de Simone Biles e Naomi Osaka. E, neste ponto, somos destituídos de nossa humanidade porque não podemos parar e nem falhar, assim como as máquinas. Nunca somos colocados em lugar de fragilidade, lugar ocupado pela branquitude. Não que não sejamos fortes. Somos. Mas não temos direito de ser diferente.
Não dá para achar que o futebol é uma caixinha hermeticamente fechada. A sociedade está inserida no esporte, assim como ele está inserido na sociedade, em uma simbiose. Assim, como Reinaldo expressou suas crenças políticas e sociais em campo — e pagou por isso — esses garotos estão sendo acusados de "perderem o foco" ao expressar no visual suas marcas, pertencimento e histórias de vida.
*Ana Flávia Oliveira é repórter e produtora do UOL.
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