Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Maxwell Alexandre: Descoloração e a vaidade preta
Descolorir o cabelo rouba foco? Ganha ou perde Copa do Mundo? A resposta, logo de cara, é não. Então, por que o estilo platinado dos jogadores vira discussão no momento da eliminação do Brasil diante da Croácia? É preciso entender o que significa platinar o cabelo para o povo negro e a origem do estilo.
No contexto das periferias platinar os cabelos tem a ver com celebração, brincadeira e beleza. Um ritual masculino, periférico, preto. Um traço cultural forte nas favelas cariocas, que se intensifica com a chegada do verão, Réveillon e Carnaval. Por ser um ritual de celebração é comum ser invocado/manifestado em festas específicas, bailes e jogos decisivos de futebol, como é o caso da Copa do Mundo.
Descolorir o cabelo é uma afirmação de rebeldia, empoderamento e liberdade diante de qualquer estrutura discreta e indiscreta de aprisionamento do corpo negro. É desafiar a estrutura racista que rege o país.
É mais uma coisa que não "devíamos" ter: cabelo loiro. Aí isso vira símbolo de todas as coisas que foram negadas: nossos próprios corpos, autoestima, vaidade, dinheiro.
Não é à toa que essa estética tá no futebol, na música, no tráfico, e agora na arte contemporânea. São formas de ascensão para juventude preta, formas de autonomia, de insubserviência.
Descoloração global é vaidade e resistência para pessoas pretas. Se envaidecer tem relação direta a se pertencer, num contexto onde nossos corpos mal voltaram a ser nossos, tem pouco mais de 100 anos. Para a branquitude, um preto vaidoso é perigoso, eles sabem disso. Apontar e reprimir a vaidade preta é um sistema programado de manutenção de poder.
Eu não nego a crítica à vaidade, ostentação, a tudo que é supérfluo, ainda mais se tratando de Brasil, um país de muita desigualdade. Agora, é preciso separar a vaidade preta e branca. Vaidade pro povo preto é resistência.
Cabelo tem a ver com o foco profissional?
Um branco platinado é descolado, um preto é um estigma.
Não que a crítica sobre vaidade e foco não se estenda para jogadores brancos, como é o caso de David Beckham, Cristiano Ronaldo e Lionel Messi. Messi e Beckham inclusive já foram descoloridos. Mas, como afirmei ainda agora, essa estética em corpo branco é "descolada" enquanto para negros é mais um estigma mesmo. Cristiano Ronaldo perdeu a Copa e não vimos notícias questionando seu foco, apesar dele ser metrossexual.
Secularmente o Brasil não questiona a vaidade de pessoas brancas, que podem exibir seus bens sem o menor constrangimento, mesmo sabendo que suas heranças são majoritariamente frutos de genocídio e espoliação. A carne com ouro é outro episódio da Copa por exemplo que esbarra nessa questão. A cena é um sintoma da liberdade e tranquilidade que as classes abastadas têm para exercer poder e riqueza naquele país. Essa não é uma cultura preta, mas é colocada em xeque quando jogadores pretos botam a boca. Afinal, comer carne banhada a ouro não é algo que surgiu agora, com a simples presença de homens negros na mesa, mas parece ter sido a primeira vez a incomodar a estrutura racista brasileira. Criticaram até as danças que os caras faziam para comemorar. Em que mais na vida desses caras - em sua maioria, pretos, de origem humilde - a galera branca vai querer dar palpite?
Novamente, vaidade, riqueza, ostentação, não estão acima de toda e qualquer crítica, mas têm valores absolutamente diferentes para brancos e pretos dada a nossa história e do mundo ocidental moderno. Nós não estamos no mesmo ponto, não temos os mesmos códigos e nem estamos sujeitos aos mesmos valores, mas é muito difícil para maioria dos brancos compreender esse gap. Muito chão ainda. Ver uma historiadora e antropóloga branca renomada macetar esse tipo de publicação em rede social própria não me surpreende, mas me indigna, porque no final o que me parece é que lhe falta espelho. Brancos deveriam pensar duas vezes antes de criticar nosso cabelo, nossa postura, nossas danças, nossos rituais ou até mesmo em como gastamos nosso dinheiro.
A vaidade do homem negro é sinônimo de perigo, não só no Brasil, mas em todo ocidente. A beleza e a riqueza de um homem preto são questionadas veementemente.
Os brancos podem ter uma vaidade mais silenciosa porque tudo já lhe foi garantido. Tiveram a liberdade de experimentar e escolher o que fazer com seus corpos, seus bens, suas casas, seu dinheiro, por gerações e gerações.
Os pretos precisam ter o direito de decidir que tipo de rico querem ser. Falo isso porque essas críticas sobre a estética se estendem para nossas posses, dinheiro ou qualquer outro tipo de propriedade e decisão nesse sentido.
Eu mesmo pinto o cabelo de loiro desde 2013. Quando ainda era criança eu já queria descolorir, porque é uma cultura forte na favela, mas minha mãe tentava me preservar e por isso nunca deixou, falava que era coisa de vagabundo. Muitos traficantes descolorem o cabelo, então essa estética ficou associada ao estilo de vida das facções. Nesse contexto, se você era negro e pintava o cabelo de loiro, acabava atraindo a atenção da polícia, de racistas e todo tipo de preconceito. Isso mudou bastante quando celebridades como o Chris Brown, Kanye West, Pharrell Williams, Jaden Smith e, no Brasil, o Belo e até o Neymar adotaram esse estilo.
Depois que eles assumiram essa estética também, a moda rapidamente a absorveu. Para mim, Descoloração Global é também um comentário de liberdade, de podermos ser o que quisermos ser. Uma grande referência que tenho desde pequeno e me ajuda a ratificar essa estética é o famoso anime Dragon Ball Z, que marcou minha geração; seus personagens tinham cabelo preto, mas ficavam loiros quando atingiam níveis superiores e viravam Super Saiyajins, aumentando seus superpoderes".
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