Topo

Coluna

Campo Livre


Campo Livre

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Maxwell Alexandre: Descoloração e a vaidade preta

Neymar consola Rodrygo após a eliminação do Brasil na Copa do Mundo do Qatar - Gabriel Bouys/AFP
Neymar consola Rodrygo após a eliminação do Brasil na Copa do Mundo do Qatar Imagem: Gabriel Bouys/AFP
Maxwell Alexandre

Colaboração para o UOL

14/12/2022 04h00

Descolorir o cabelo rouba foco? Ganha ou perde Copa do Mundo? A resposta, logo de cara, é não. Então, por que o estilo platinado dos jogadores vira discussão no momento da eliminação do Brasil diante da Croácia? É preciso entender o que significa platinar o cabelo para o povo negro e a origem do estilo.

No contexto das periferias platinar os cabelos tem a ver com celebração, brincadeira e beleza. Um ritual masculino, periférico, preto. Um traço cultural forte nas favelas cariocas, que se intensifica com a chegada do verão, Réveillon e Carnaval. Por ser um ritual de celebração é comum ser invocado/manifestado em festas específicas, bailes e jogos decisivos de futebol, como é o caso da Copa do Mundo.

Descolorir o cabelo é uma afirmação de rebeldia, empoderamento e liberdade diante de qualquer estrutura discreta e indiscreta de aprisionamento do corpo negro. É desafiar a estrutura racista que rege o país.

É mais uma coisa que não "devíamos" ter: cabelo loiro. Aí isso vira símbolo de todas as coisas que foram negadas: nossos próprios corpos, autoestima, vaidade, dinheiro.

Não é à toa que essa estética tá no futebol, na música, no tráfico, e agora na arte contemporânea. São formas de ascensão para juventude preta, formas de autonomia, de insubserviência.

Descoloração global é vaidade e resistência para pessoas pretas. Se envaidecer tem relação direta a se pertencer, num contexto onde nossos corpos mal voltaram a ser nossos, tem pouco mais de 100 anos. Para a branquitude, um preto vaidoso é perigoso, eles sabem disso. Apontar e reprimir a vaidade preta é um sistema programado de manutenção de poder.

Maxwell Alexandre  - Gui Gomes - Gui Gomes
Maxwell Alexandre, artista plástico brasileiro
Imagem: Gui Gomes

Eu não nego a crítica à vaidade, ostentação, a tudo que é supérfluo, ainda mais se tratando de Brasil, um país de muita desigualdade. Agora, é preciso separar a vaidade preta e branca. Vaidade pro povo preto é resistência.

Cabelo tem a ver com o foco profissional?

Um branco platinado é descolado, um preto é um estigma.

Não que a crítica sobre vaidade e foco não se estenda para jogadores brancos, como é o caso de David Beckham, Cristiano Ronaldo e Lionel Messi. Messi e Beckham inclusive já foram descoloridos. Mas, como afirmei ainda agora, essa estética em corpo branco é "descolada" enquanto para negros é mais um estigma mesmo. Cristiano Ronaldo perdeu a Copa e não vimos notícias questionando seu foco, apesar dele ser metrossexual.

Messi platinado  - AFP PHOTO / JUAN MABROMATA - AFP PHOTO / JUAN MABROMATA
Lionel Messi com o cabelo descolorido
Imagem: AFP PHOTO / JUAN MABROMATA

Secularmente o Brasil não questiona a vaidade de pessoas brancas, que podem exibir seus bens sem o menor constrangimento, mesmo sabendo que suas heranças são majoritariamente frutos de genocídio e espoliação. A carne com ouro é outro episódio da Copa por exemplo que esbarra nessa questão. A cena é um sintoma da liberdade e tranquilidade que as classes abastadas têm para exercer poder e riqueza naquele país. Essa não é uma cultura preta, mas é colocada em xeque quando jogadores pretos botam a boca. Afinal, comer carne banhada a ouro não é algo que surgiu agora, com a simples presença de homens negros na mesa, mas parece ter sido a primeira vez a incomodar a estrutura racista brasileira. Criticaram até as danças que os caras faziam para comemorar. Em que mais na vida desses caras - em sua maioria, pretos, de origem humilde - a galera branca vai querer dar palpite?

Arte de Maxwell Neymar - Arquivo pessoal/Maxwell Alexandre - Arquivo pessoal/Maxwell Alexandre
Arte de Maxwell Alexandre
Imagem: Arquivo pessoal/Maxwell Alexandre

Novamente, vaidade, riqueza, ostentação, não estão acima de toda e qualquer crítica, mas têm valores absolutamente diferentes para brancos e pretos dada a nossa história e do mundo ocidental moderno. Nós não estamos no mesmo ponto, não temos os mesmos códigos e nem estamos sujeitos aos mesmos valores, mas é muito difícil para maioria dos brancos compreender esse gap. Muito chão ainda. Ver uma historiadora e antropóloga branca renomada macetar esse tipo de publicação em rede social própria não me surpreende, mas me indigna, porque no final o que me parece é que lhe falta espelho. Brancos deveriam pensar duas vezes antes de criticar nosso cabelo, nossa postura, nossas danças, nossos rituais ou até mesmo em como gastamos nosso dinheiro.

Arte Maxwell Alexandre Aldair - Arquivo pessoal/Maxwell Alexandre - Arquivo pessoal/Maxwell Alexandre
Arte de Maxwell Alexandre
Imagem: Arquivo pessoal/Maxwell Alexandre

A vaidade do homem negro é sinônimo de perigo, não só no Brasil, mas em todo ocidente. A beleza e a riqueza de um homem preto são questionadas veementemente.

Os brancos podem ter uma vaidade mais silenciosa porque tudo já lhe foi garantido. Tiveram a liberdade de experimentar e escolher o que fazer com seus corpos, seus bens, suas casas, seu dinheiro, por gerações e gerações.

Os pretos precisam ter o direito de decidir que tipo de rico querem ser. Falo isso porque essas críticas sobre a estética se estendem para nossas posses, dinheiro ou qualquer outro tipo de propriedade e decisão nesse sentido.

Arte Maxwell 2  - Arquivo pessoal/Maxwell Alexandre - Arquivo pessoal/Maxwell Alexandre
Arte de Maxwell Alexandre
Imagem: Arquivo pessoal/Maxwell Alexandre

Eu mesmo pinto o cabelo de loiro desde 2013. Quando ainda era criança eu já queria descolorir, porque é uma cultura forte na favela, mas minha mãe tentava me preservar e por isso nunca deixou, falava que era coisa de vagabundo. Muitos traficantes descolorem o cabelo, então essa estética ficou associada ao estilo de vida das facções. Nesse contexto, se você era negro e pintava o cabelo de loiro, acabava atraindo a atenção da polícia, de racistas e todo tipo de preconceito. Isso mudou bastante quando celebridades como o Chris Brown, Kanye West, Pharrell Williams, Jaden Smith e, no Brasil, o Belo e até o Neymar adotaram esse estilo.

Depois que eles assumiram essa estética também, a moda rapidamente a absorveu. Para mim, Descoloração Global é também um comentário de liberdade, de podermos ser o que quisermos ser. Uma grande referência que tenho desde pequeno e me ajuda a ratificar essa estética é o famoso anime Dragon Ball Z, que marcou minha geração; seus personagens tinham cabelo preto, mas ficavam loiros quando atingiam níveis superiores e viravam Super Saiyajins, aumentando seus superpoderes".

arte - Arquivo pessoal/Maxwell Alexandre - Arquivo pessoal/Maxwell Alexandre
Arte de Maxwell Alexandre
Imagem: Arquivo pessoal/Maxwell Alexandre

Campo Livre