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Por que o São Paulo é considerado "o clube mais uruguaio do mundo"?

Uniforme homenageia os ídolos uruguaios Lugano, Dario Pereyra, Pedro Rocha e Pablo Forlán - Luiz Pires/Vipcomm
Uniforme homenageia os ídolos uruguaios Lugano, Dario Pereyra, Pedro Rocha e Pablo Forlán Imagem: Luiz Pires/Vipcomm

Gabriel Perecini

19/12/2022 18h33

Com uma final épica, a Copa do Mundo de 2022 terminou. Agora, aos poucos, vamos novamente migrando as atenções exclusivamente ao futebol de clubes. Para fazer essa transição, vamos contar a história de uma das ligações entre um clube e um país - ou seleção - mais famosas do mundo: o São Paulo e o Uruguai.

Durante a estreia da Celeste no Mundial do Qatar, contra a Coreia do Sul, foi possível ver uma enorme bandeira Tricolor, localizada na direção da bandeira de escanteio à direita do gol onde os charrúas atacaram no primeiro tempo. Mas mais do que Diego Lugano, Pedro Rocha e companhia, a história incrivelmente próxima entre ambos explica por que vários são-paulinos torcem apenas para a seleção uruguaia. Confira todas as ligações entre os primeiros campeões mundiais e a equipe do Morumbi.

Desde 1930

O São Paulo foi fundado em 25 de janeiro de 1930. E já em seu primeiro ano, o clube contou com um estrangeiro no elenco: Emílio Armiñana. A nacionalidade? Uruguaio, claro. O meio-campista fez sua estreia menos de cinco meses depois da fundação do clube, em 13 de maio, no amistoso contra o Vasco. Naquele ano, o São Paulo alcançou o vice-campeonato estadual.

Já em 1931, o clube foi campeão. O jogo do título foi uma goleada por 4 a 1 contra o rival Corinthians, em pleno Parque São Jorge. Essa conquista tornou o São Paulo o time mais jovem entre os grandes do estado a erguer uma taça. Na campanha do título, lá estava Emílio Armiñana, que participou de 10 dos 26 jogos, sendo seis vitórias e quatro empates. De quebra, marcou um gol.

Além de ser o primeiro estrangeiro a jogar, marcar um gol e ser campeão, o uruguaio também foi o primeiro a jogar os três clássicos regionais, contra Corinthians, Palmeiras e Santos. Ao todo, foram 25 partidas de Armiñana pelo Tricolor.

Uruguai São Paulo SPFC 2019 - Reprodução - Reprodução
Twitter da seleção uruguaia divulgando o terceiro uniforme do São Paulo
Imagem: Reprodução

Anfitrião no Maracanazo

A épica conquista da Copa do Mundo de 1950 é conhecida por todos. Mas o que poucos sabem é que o São Paulo teve um papel relevante nessa caminhada, inclusive com várias homenagens feitas pelos uruguaios.

Após golear a Bolívia por 8 X 0 em Belo Horizonte, o Uruguai foi para São Paulo, onde enfrentaria Espanha e Suécia, no Pacaembu, pelo quadrangular final. O último jogo seria no Rio de Janeiro, contra o Brasil. O local escolhido para hospedagem e treinamento entre os dias 5 e 14 de julho foi o complexo esportivo e social onde hoje fica o Estádio do Canindé. Na época, o São Paulo era o proprietário do local e o utilizava para os treinamentos de futebol e atletismo.

A estadia foi completa: desde alimentação e material esportivo até jogadores da equipe profissional que complementaram alguns treinamentos. No reconhecimento do gramado do Pacaembu, os atletas tricolores Zequinha, Yeso e Toni completaram a equipe reserva no treinamento, que bateu a titular por 7 a 5.

Após a conquista do título, os jogadores uruguaios enviaram passagens áreas para que a cozinheira do São Paulo, Dona Catharina, e o marido, Sr. Serrano, roupeiro do São Paulo, passarem duas semanas no Uruguai, como forma de agradecimento pelo período em que ficaram hospedados. Durante a Copa, os atletas visitavam até a casa da cozinheira para comer, além da alimentação no Canindé.

Camisa são-paulina em jogo de Copa do Mundo

Ainda em 1950, no duelo contra a Espanha, o goleiro reserva Paz tirou a foto oficial do jogo e ficou no banco com uma camisa do São Paulo. Durante a estadia no Canindé, o goleiro titular e lenda do futebol uruguaio, Roque Máspoli, também utilizou o manto tricolor. Aliás, vários jogadores daquela Celeste campeã utilizaram vestimentas são-paulinas naquele período.

Uruguai 0 X 1 São Paulo, no Estádio Centenário

Sim, esse jogo aconteceu. E com contornos espetaculares.

Como preparação para a Copa do Mundo de 1974, o São Paulo acertou um amistoso contra a seleção uruguaia como contrapartida para liberar Pablo Forlán e Pedro Rocha com antecedência. O jogo aconteceu no mítico Estádio Centenário, que recebeu mais de 70 mil pessoas. Antes da bola rolar, um acordo final: Forlán e Rocha atuariam pelo São Paulo!

O resultado? Logo no começo do segundo tempo, uma assistência de Pablo Forlán para o gol de Pedro Rocha definiu o jogo. Gol uruguaio contra o Uruguai, em pleno Centenário. O lance calou o estádio por alguns segundos e, logo em seguida, uma salva de palmas tomou conta do local.

Para se ter uma ideia do tamanho do feito, confira o trecho do livro "Tricolor Celeste", do colunista do UOL Esporte, Menon:
"Apesar da campanha ruim, foi um orgulho para Forlán, que não vê distinção entre futebol e pátria. 'Para mim, não é o futebol do Uruguai que está em campo quando a Celeste entra. É o próprio país.'

Ele se emociona ao falar desse sentimento. 'No Uruguai, somos três milhões habitantes. Três gatos loucos, como a gente diz. O Uruguai só é conhecido lá fora por gente como Gighia, Schiaffino e tantos outros. Nenhuma indústria dá tanto dinheiro ao nosso país como a transferência de jogadores. Então, temos que respeitar esse passado. Para mim, não tem diferença, não. É o meu país que estou defendendo.'"

Naquele dia, Pablo Forlán e Pedro Rocha atuaram contra a própria pátria para defender o São Paulo.

O último técnico antes de Telê

Depois de se aposentar dos gramados, Pablo Forlán assumiu como técnico das categorias de base do São Paulo. Em 1990, com o clube vivendo forte instabilidade, o uruguaio acabou assumindo o time principal. Ao todo, ficou no cargo por 30 partidas, com 12 vitórias, 11 empates e sete derrotas. Entendendo que não conseguiu tirar o melhor desempenho, o ídolo optou por pedir demissão. O gesto naturalmente obrigou o São Paulo a ir atrás de um novo treinador. O escolhido foi Telê Santana. O resto é história.

Uruguai no Morumbi

Se o São Paulo já jogou no Centenário, o Uruguai também tem uma partida na casa do Tricolor. Em 2007, pelas Eliminatórias da Copa de 2010, Brasil X Uruguai se enfrentaram no Morumbi. Nas arquibancadas, vários torcedores do São Paulo foram ao jogo com a camisa Celeste e até torceram pelo Uruguai, muito por causa de Diego Lugano, que esteve em campo. O Brasil venceu de virada, com dois gols de... Luis Fabiano, ex-são-paulino e que voltaria ao clube no ano seguinte.

Torcedores do São Paulo recebem Diego Lugano no Aeroporto de Guarulhos - Guilherme Palenzuela/UOL - Guilherme Palenzuela/UOL
Torcedores do São Paulo recebem Diego Lugano no Aeroporto de Guarulhos
Imagem: Guilherme Palenzuela/UOL

O amuleto de Lugano

A identificação do zagueiro com o São Paulo não é nenhuma novidade. Tanto que Lugano escolheu se aposentar no clube, em 2017. Mas, mesmo após o fim da primeira passagem, em 2006, o defensor seguiu levando as cores do Tricolor, inclusive para defender a seleção uruguaia.

Para manter o tradicional mate aquecido, o ídolo tinha uma garrafa térmica do São Paulo. Não era nada incomum ver fotos do defensor com ela. Lugano disse que era um "amuleto", já que havia levado a garrafa para o Japão, durante a conquista do Mundial de Clubes, em 2005. Deu certo: com a companhia do "amuleto", o capitão da Celeste ergueu a taça de campeão da Copa América, em 2011, na Argentina.

Deuses da Raça

Quando se fala da relação são-paulina com o Uruguai, a primeira coisa que vem a cabeça são os quatro principais uruguaios que passaram pelo clube: Pablo Forlán, Pedro Rocha, Darío Pereyra e Diego Lugano. O quarteto foi apelidado de "Deuses da Raça", ganhando, inclusive, uma coleção de camisas com esse nome em 2012.

Como se não bastasse a enorme homenagem, com uniformes com o azul celeste misturado com as listras tricolores, o São Paulo entrou em campo vestindo essa camisa em setembro daquele ano. Na ocasião, os jogadores de linha entraram usando o uniforme comemorativo e Rogério Ceni usou uma camisa em homenagem a Waldir Peres. Na hora do jogo, os atletas de linha utilizaram o uniforme tradicional e o São Paulo venceu a Portuguesa por 3 a 1. Até hoje, essa coleção é reconhecida por um dos maiores sucessos de venda do clube. Atualmente, os quatro "Deuses" têm seus rostos desenhados em frente ao estádio do Morumbi.

Em 2019, um episódio semelhante: o São Paulo lançou um terceiro uniforme azul. A justificativa inicial era, novamente, homenagear a ligação com o Uruguai. O problema foi que a camisa não possuía nenhuma ligação com o país, além da cor azul, e era praticamente idêntica ao uniforme alternativo utilizado por outros clubes da fornecedora de material esportivo. Isso gerou muita reclamação de grande parte da torcida.

Para contornar a situação, foi lançado um "patch" especial com a bandeira uruguaia e Diego Lugano, dirigente tricolor à época, fez uma ponte para que o Twitter oficial da seleção uruguaia fizesse algumas interações sobre essa camisa com a torcida são-paulina, além de sortear uma camisa oficial do Uruguai para os tricolores.

Ponto de encontro na Copa 2014

Na Copa do Mundo do Brasil, o Morumbi foi um dos principais pontos de encontro de uruguaios para assistir aos jogos. Na estreia contra a Costa Rica, por exemplo, mais de 200 pessoas literalmente lotaram o restaurante que existia no Portão 5 do estádio para acompanhar a partida, incluindo a cônsul uruguaia à época, Flávia Pisano. O local teve comida típica do país e esteve totalmente decorado com as cores e a bandeira uruguaias.

A "sentença" de Álvaro Pereira

Em 2014, o São Paulo anunciou a contratação do lateral-esquerdo Álvaro Pereira. "Palito" veio por empréstimo da Internazionale (ITA) e foi convocado para a Copa do Mundo do Brasil. Foi o segundo Mundial do jogador, que já tinha sido peça importante na histórica campanha Celeste em 2010. Na apresentação, o lateral impressionou muitas pessoas pelo bom conhecimento que tinha sobre a história são-paulina. Ao ser perguntado se sabia da forte relação do São Paulo com o Uruguai, o atleta foi enfático: "Fora do Uruguai, o São Paulo é o clube mais uruguaio do mundo", afirmou.

Se a passagem pelo Tricolor foi curta e sem tanto brilho, o jogador protagonizou alguns momentos marcantes pela demonstração de raça. Em campo, o jogador retornou ao jogo após desmaiar, contra o Criciúma, em lance parecido ao que aconteceu meses antes, contra a Inglaterra, na Copa do Mundo. Fora dele, o esforço para atuar fora de casa contra Huachipato (CHI) e Atlético Nacional (COL), pela Copa Sul-Americana. Contra os chilenos, o lateral viajou mais de 16 mil km em poucos dias, após compromissos com a seleção, e entrou em campo. Como forma de reconhecimento, Rogério Ceni entregou a braçadeira de capitão ao uruguaio nesse jogo.

Rogério Ceni e jogadores do São Paulo entraram em campo contra o Coritiba com uma camisa em homenagem ao ídolo Pedro Rocha, falecido recentemente. Quando a bola rolou, o time paranaense venceu por 1 a 0 - Miguel Schincariol / saopaulofc.net - Miguel Schincariol / saopaulofc.net
Rogério Ceni e jogadores do São Paulo entraram em campo contra o Coritiba com uma camisa em homenagem ao ídolo Pedro Rocha, falecido recentemente.
Imagem: Miguel Schincariol / saopaulofc.net

Títulos e números expressivos

Apesar de ser "apenas" o segundo país estrangeiro com mais jogadores a atuar pelo São Paulo - 18, atrás da Argentina, com 31 - os números uruguaios são bem expressivos. No Top-10 de estrangeiros que mais vestiram a camisa são-paulina, o Uruguai é o país com mais representantes: quatro. São eles: Darío Pereyra (2º, com 453 jogos), Pedro Rocha (3º, com 393 jogos), Pablo Forlán (4º, com 243 jogos) e Diego Lugano (5º, com 213 jogos).

O maior artilheiro estrangeiro da história do clube também é uruguaio: Pedro Rocha, com 119 gols. O Verdugo era o único artilheiro estrangeiro de um Campeonato Brasileiro até 2022, quando Germán Cano alcançou esse feito. Em 1972, Pedro Rocha fez 17 gols e dividiu a artilharia com Dadá Maravilha.

Por fim, o Uruguai é a única nação estrangeira campeã da Libertadores e do Mundial pelo São Paulo, com Diego Lugano, que foi titular e peça fundamental na campanha dessas duas conquistas, em 2005. Além disso, o "Dios" nunca perdeu um clássico para Corinthians ou Palmeiras. Contra o alvinegro, foram quatro jogos, com três vitórias e um empate. Nesse período, o rival contava com atletas como Tévez e Mascherano. Já contra o alviverde, foram nove jogos, com sete vitórias e dois empates. No último duelo, o uruguaio enfrentou Gabriel Jesus, Dudu, Roger Guedes e companhia, e teve grande atuação no triunfo por 1 a 0.

Convocados para a Copa do Mundo

O Uruguai também é disparado o país estrangeiro que o São Paulo mais cedeu jogadores para a Copa do Mundo enquanto atuavam pelo clube: quatro. E se você chegou até aqui, já percebeu que um dos quatro é Álvaro Pereira. Palito se soma a Pablo Forlán e Pedro Rocha (1974), além de Darío Pereyra (1986). A ausência da Celeste na Copa de 2006 tirou a possibilidade de Diego Lugano estar nessa lista.

Além deles, apenas Victor Aristizábal (Colômbia, 1998), Christian Cueva (Peru, 2018) e Robert Arboleda (Equador, 2022) integram esse seleto grupo. Néicer Reascos jogou a Copa de 2006 pelo Equador já sob contrato com o São Paulo, mas foi convocado quando ainda era jogador da LDU (EQU).

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