Vini Jr melhor do mundo? Discurso antirracista vence por representatividade
Desde 2019, faço parte de um grupo de jornalistas e estatísticos de futebol das três Américas no Whatsapp. São aproximadamente 100 pessoas de pelo menos uns 25 países se comunicando em espanhol - eu sou um dos únicos da galera que tem ascendência negra. Para minha surpresa, em março deste ano, após um dos casos de racismo da torcida do Atlético de Madri contra o Vinícius Júnior, grande parte desses jornalistas se posicionou contra o brasileiro. Achei aquilo violento, tentei colocar meu ponto e não fui ouvido. Desde então, procurei saber mais sobre a origem desse ódio contra o atacante - que obviamente parte do racismo estrutural, mas é travestido de outros sentimentos no discurso dos colegas ali. Percebi que tinha muita gente na imprensa fora do Brasil com a mesma opinião.
O jeito de pensar nos choca: a imagem de um jogador carismático, que se coloca politicamente e é um militante na luta contra o racismo, era bem vista só aqui no Brasil. Lá fora, Vini Jr. era tido como um bad-boy, um provocador, merecedor dos xingamentos mesmo por pessoas esclarecidas. Escutei expressões como "falso moralista", "ator", "mentiroso", "folgado", "palhaço" e outros adjetivos escabrosos. Fui dando uma olhada em quem eram esses repórteres e estáticos e se tratavam de brancos, de origem europeia, mas também muitos argentinos, e várias pessoas que se diziam a favor da extrema direita. E é preciso dar nome: racistas. Não declarados, porque é crime assumir-se, mas está implícito no discurso de ódio.
Quando a Revista France Football divulgou a lista dos 30 jogadores finalistas ao prêmio, levantei essa bola lá na Revista Placar: Vinícius poderia não ser o vencedor e Rodri era, sim, o grande favorito. Mesmo sendo destaque do Real Madrid nas conquistas da Liga dos Campeões da Europa e do Campeonato Espanhol, o ex-jogador do Flamengo provavelmente perderia o prêmio por essa questão e pelo fato de que Rodri, um europeu branco, representava a imagem oposta do brasileiro.
Jogador pouco polêmico, Rodri foi bem no Manchester City na conquista da Premier League. Mas estava longe de ser o grande destaque, como o artilheiro Haaland. O volante, capitão da seleção espanhola, fortaleceu seu favoritismo à Bola de Ouro após o título da Euro, mesmo não sendo novamente o melhor de sua equipe - o jovem Lamine Yamal foi quem brilhou.
Com essas informações e uma análise do que cada jogador fez na temporada 2023/24, decidimos na redação da Placar fazer uma enquete com jornalistas de várias nacionalidades, presentes na Copa América realizada nos Estados Unidos. Com votos de mais de 40 pessoas, o resultado confirmou aquilo que imaginávamos: Rodri primeiro, Vini segundo. E a capa da revista do mês de agosto foi justamente essa: "Bola de Ouro Ameaçada". Nas redes sociais, a repercussão não foi tão boa de cara, com muitos brasileiros achando um absurdo a hipótese de Vinícius ficar atrás de Rodri na premiação. Ainda mais porque a capa estampava a antipatia que o brasileiro tem lá fora e que isso poderia pesar bastante. A reportagem de várias páginas usa a palavra correta: a ojeriza que o atacante causa na mídia é motivada pelo racismo.
No final de outubro, Rodri ganhou o prêmio e a chuva de críticas nas redes ganhou dimensões maiores. A revolta pela não escolha de Vini fez até com que o Real Madrid desistisse de mandar seus premiados para a França, na cerimônia. Naquele momento, então, a reportagem da Placar passou a fazer sentido para os brasileiros. Mas os críticos de Vini se revoltaram ainda mais, o chamando de "mau perdedor" e o colocando na posição de vilão da história contra o queridinho Rodri. O protagonismo foi da ausência de Vini. Rodri quem? O grupo dos jornalistas fervia de críticas.
Agora, na premiação do melhor jogador do mundo da Fifa, Vinícius Júnior foi eleito o grande vencedor, com Rodri na segunda colocação. A votação da Fifa, mais democrática do que a da France Football, permitiu que o brasileiro ganhasse o prêmio. No Balon d'Or, 100 jornalistas dos países mais bem colocados no ranking da Fifa deram seus votos. Grande maioria da Europa. No prêmio da Fifa, além do voto popular, jornalistas, técnicos e capitães de 210 países escolheram os melhores jogadores.
Nessa última terça-feira (17), a Fifa divulgou de onde vieram os votos e foi possível enxergar que Vinícius Júnior ganhou o prêmio pela força dos capitães das seleções africanas (basicamente formada por negros), por outros negros, capitães de seleções que não estão na África (Canadá, Equador, Belize, por exemplo), pelos votos da África e pela votação dos torcedores no site oficial da entidade. Enquanto isso, técnicos, na maioria brancos, escolheram Rodri. A Europa, majoritariamente branca, escolheu Rodri. Na América do Sul, apenas dois treinadores votaram em Vini Jr.: Dorival Júnior, da seleção brasileira, e Óscar Villegas, da boliviana, refletindo aquilo que tinha visto lá no grupo do Whatsapp.
Na Europa, Rodri recebeu 77 votos como primeiro colocado, contra 37 de Vini. Entre os técnicos, a diferença foi mais acentuada: 25 para Rodri e 9 para Vini. Na África, o brasileiro recebeu 77 como primeiro colocado e Rodri 27. E entre os capitães das seleções, foram 31 votos para Vini e apenas 4 para Rodri. A diferença não foi tão grande assim a favor de Vini (22 a 15) entre os treinadores, muitos europeus.
Além do apoio maciço dos africanos, teve a força do voto popular (1,1 milhão para Vini contra 264 mil para Rodri). Não dá para saber de onde vieram os fãs votantes, mas a julgar pelo barulho que está sendo feito nas redes sociais a favor de Fernanda Torres no Oscar, dá para sacar que, na internet, o brasileiro não brinca em serviço e defende os seus, clicando sem parar. O Brasil, assim, pode ver um jogador seu como o melhor do mundo após 17 anos - Kaká havia sido o último, lá em 2007.
A representatividade é importante. África e o voto popular corrigem a grande injustiça do futebol de 2024. O antirracismo precisa de gente. Precisa da gente. Eu, um dos únicos jornalistas pretos entre os estatísticos das Américas, pude ver uma reação oposta daquela de outubro ali na turminha. A vitória de Vini quase não foi comentada. Nenhum alarde. Diferentemente da euforia por sua derrota há dois meses. Curioso.
Mas a gente segue lutando, reclamando e pontuando. Não passarão nos estádios, nos grupos de Whatsapp, nem no noticiário esportivo. Sigamos.
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