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Clodoaldo Silva

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Spectrum: A sociedade não é monocromática

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autismo Imagem: iStock

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02/04/2021 04h00

O Dia Internacional da Síndrome de Down (T21), criado pela Down Syndrome International, é comemorado desde 2006 em várias cidades do Brasil e do mundo no dia 21 de março, fazendo alusão aos três cromossomos no par de número 21 que as pessoas com síndrome de Down apresentam (21/3). Menos de quinze dias depois, temos o Dia Mundial de Conscientização do Transtorno do Espectro Autista (TEA), em 02 de abril.

A proximidade do tema não está só nas datas. Isto porque muitas pessoas com síndrome de Down também têm o Transtorno do Espectro Autista. Apesar de se impor a obrigação legal do Poder Público de conscientizar a comunidade, fixar datas para chamar a atenção sobre essa necessidade ainda é fundamental.

Com relação à T21, testemunha-se neste século 21, sem dúvida, um grande avanço atitudinal, refletido inclusive na seara terminológica, a julgar por expressões de outrora, como "idiotia furfurácea" e "mongolismo", combinadas a políticas de exclusão ou integração e abordagens meramente terapêuticas da pessoa com síndrome de Down. Ultrapassamos o estágio de focar na "Síndrome" para enfatizar a "Pessoa", abandonando igualmente o conceito de pessoa "especial" ou de "portador(a)" de deficiência.

Neste mesmo sentido, a expressão Transtorno do Espectro Autista foi consagrada na legislação brasileira pela Lei Federal nº 12.764/2012, quando juridicamente se deixou claro que aqueles com tal diagnóstico são considerados pessoas com deficiência. A utilização da palavra Espectro tem agradado aos especialistas, pois as características não estão presentes em todos os autistas. Existem pessoas com TEA severo e outras com traços leves.

A etimologia da palavra Espectro vem do latim spectrum. Dentre os diversos significados, o que mais parece se aproximar ao autismo é a ideia do espectro formado por uma faixa luminosa sem interrupções, apresentando todas as cores do arco-íris. O autismo é, portanto, diverso, com características ao mesmo tempo semelhantes e diferentes das pessoas com tal diagnóstico.

Essencial para esta mudança de mentalidade foi a CDPD (Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência), calcada nos direitos humanos, abandonando o modelo médico da deficiência e o substituindo por um modelo de natureza social. A partir de então, as pessoas com deficiência passaram a ser percebidas como sujeitos de direito, ou seja, donas e protagonistas de suas vidas, e não meros objetos de direito, a serem 'administradas' por outras pessoas.

Um dos aspectos revolucionários da Convenção reside no pressuposto de que a sociedade e seu comportamento contribuem negativamente para a condição da deficiência, de forma que é necessário examinar seu entorno para constatar e eliminar as barreiras diárias.

Outros aspectos transformadores da CDPD encontram-se marcados nos Princípios Gerais, destacando-se a acessibilidade, o respeito pela dignidade inerente, a autonomia individual, inclusive a liberdade de fazer as próprias escolhas, bem como a independência das pessoas, a plena e efetiva participação e inclusão na sociedade, além do respeito pela diferença e pela aceitação das pessoas com deficiência como parte da diversidade humana e da humanidade.

O universo da pessoa com deficiência pode ser interpretado em nossos dias como o espaço no qual se corporificam algumas das principais questões da sociedade. Direitos sociais, consciência social, educação, saúde, medicina, tecnologia, produção e eficiência são alguns dentre tantos assuntos que perpassam as garantias asseguradas pelo ordenamento jurídico a essa parcela da população.

Em meio a diversos direitos, por sua importância, merece ênfase o direito à educação, igualmente previsto na CDPD e na LBI, sobre o qual ora nos debruçamos em razão do advento do Decreto Federal nº 10.502/2020, cuja constitucionalidade está sendo debatida no STF. Travestido de boas intenções, coloca em risco a Educação Especial na Perspectiva da Inclusão, posta em prática desde 2008 e aplaudida pelos especialistas, consistindo em avanço civilizatório não sujeito a retrocesso.

O pseudo objetivo do Decreto em foco é implementar medidas e ações necessárias para garantir o direito à educação e ao AEE (Atendimento Educacional Especializado) para pessoas com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, partindo da maldosa premissa de que determinados alunos com deficiência não se beneficiam da escola comum e devem ser afastados desse espaço.

No entanto, o que se verifica pelo texto do Decreto é uma enganosa opção oferecida à família e ao estudante com deficiência: ao aluno que supostamente não teria condições de se adaptar à escola comum haveria a possibilidade de migrar para a escola/classe especializada.

Ora, sabe-se que, de acordo com o ordenamento jurídico, na verdade não há uma "opção", vez que é obrigatória a matrícula do aluno com deficiência na escola regular inclusiva, havendo sempre que necessário o AEE em caráter estritamente complementar ou suplementar, no turno oposto àquele da escola comum.

O decreto separa as pessoas em razão da deficiência, baseado na falsa ideia de se oferecer um serviço de qualidade para todos. Todavia, está evidenciado que a inclusão das pessoas com deficiência no ensino regular traz benefícios para todos os alunos, com ou sem deficiência. Pesquisas já demonstram que estratégias pedagógicas aplicadas a alunos com deficiência foram estendidas com sucesso a outros alunos sem deficiência.

A escola é um microrganismo social, onde a diversidade faz a diferença e oportuniza a convivência saudável, que não alavanca somente as pessoas com deficiência, mas também as demais crianças.

O decreto implicitamente traz a mensagem de que nem todas as pessoas têm condições de conviver em sociedade, pois, se isso não foi possível ou benéfico para alguém na escola, também não o será nos demais espaços sociais.

De outro lado, a recíproca é verdadeira em relação às demais pessoas, pois não terão a oportunidade de conviver com as consideradas "diferentes", o que aumentará o preconceito contra a pessoa com deficiência, mais conhecido atualmente como capacitismo.

A educação no ensino regular é direito do aluno e, portanto, consiste em um direito humano fundamental, indisponível. Esta abordagem inclusivista, ressalte-se, já se encontrava na Constituição da República de 1988, a qual prevê o AEE, este sim devendo ser oferecido preferencialmente na rede regular de ensino. Por seu turno, a CDPD prevê o sistema educacional inclusivo em todos os níveis.

Portanto, a família não pode se exonerar da obrigação de oferecer ao educando o direito inalienável de frequentar a escola comum bem como o AEE, caso contrário praticará o crime de abandono intelectual. De outro lado, o Estado poderá responder civilmente pela omissão. Urge, por conseguinte, detectar as barreiras que devem ser removidas, conforme a CDPD.

Enquanto lutamos pela derrubada do nefasto Decreto 10.502/20, que prima pela manutenção das barreiras acima citadas, celebramos nestas datas o fato de que um número expressivo de estudantes tem chegado à universidade e ingressado no mercado de trabalho. É emblemática, também, a eleição recente de dois parlamentares: a vereadora suplente Luana Rolim, com T21, de Santo Ângelo (RS), e o vereador Jorginho Mota, com TEA, em Guarulhos (SP).

Por fim, o Decreto 10.502 fere os princípios democráticos, vez que foi gestado intramuros, por entidades que pugnam pela escola especial, ainda sob a égide retrógrada de há muito superada. Enquanto festejamos os ganhos garantidos às pessoas com deficiência advindos da Constituição de 1988, da CDPD e da LBI, mentes atrasadas se debruçam sobre os erros do passado, querendo restaurá-los.

A escola é um microssistema que projeta a sociedade do amanhã. Como se pensar em uma sociedade livre, justa e solidária, se nela não há espaço para todos e algumas pessoas não são bem-vindas por simplesmente se acreditar que este ambiente não lhes é benéfico?

O ser humano realmente precisa se adaptar ao ambiente ou este é que deve se adaptar àquele? Como já analisado acima, não há dúvidas de que é necessário que o ambiente se adeque à pessoa.

Mas, como fazer isso, se as pessoas não convivem, não sabem - e muitas vezes não querem saber - sobre a existência dessas barreiras? A sociedade não é monocromática, mas sim um espectro, como o autismo, e por este motivo ela é tão bela.

Uns podem preferir uma cor a outra, mas a beleza do arco-íris está na existência de tantas cores, que se misturam numa tal simbiose, de forma que é impossível perceber onde as cores se separam. É isso o que se espera da sociedade: que se reconheça a existência de pessoas tão diferentes, mas cuja convivência pacífica e igualitária ocorra nessa simbiose, ao ponto de essa assimetria ser irrelevante.

E, quando finalmente a humanidade atingir essa simbiose, não precisaremos mais de leis próprias e dias de "comemoração" para as pessoas com deficiência usufruírem seus direitos.

*Caio Sousa, Cahuê Talarico, Cláudia de Noronha Santos e Margarida Seabra de Moura

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Caio Sousa é advogado e membro do Comitê Jurídico da FBASD (Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down).
Cahuê Talarico é advogado e membro do Comitê Jurídico da FBASD.
Cláudia de Noronha Santos é advogada e membro do Comitê Jurídico da FBASD.
Margarida Seabra de Moura é advogada e membro do Comitê Jurídico FBASD.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL