O Profeta René
Detesto ter que chegar ao ponto de citar um certo programa cultural, mas a situação exige: festa de Neymar sem Neymar? É golpe.
Há mais de dez anos, quando René Simões profetizou que estávamos "criando um monstro", nenhum de nós, e certamente nem o próprio René, poderia sequer imaginar a gravidade que essa previsão ganhou. Além disso, nada ofende mais o brasileiro do que uma festa para o qual ele não foi convidado - então a opinião pública caiu em cima.
A suposta festa de Neymar, supostamente sem Neymar, segundo supostas fontes próximas (não tenho informações próximas a quem) teve uma celebração mais íntima apenas para o atleta e algumas centenas de amigos verdadeiros e celebridades duvidosas, enquanto que o restante era mantido trancado num evento paralelo forçados a curtir a carreira solo de Alexandre Pires.
Tudo isso no campo das suposições, mas o fato é que fazer questão de sair de Paris para inaugurar seu próprio epicentro de coronavírus, ex-participantes de reality shows e influenciadores digitais aqui no Brasil já seria cruel o suficiente. Ainda assim, nada mais egoísta do que não comparecer ao próprio evento, deixando apenas seus convidados chafurdarem no corona enquanto o próprio jogador volta alegremente para a Europa, largando tanto o vírus quanto os influenciadores e as estranhas atrações musicais à solta em cima do restante da sofrida população.
Mas o humano Ney fez questão de tranquilizar seus fãs e usuários do Sistema Público de Saúde em geral, postando seu fim de ano em segurança, devidamente envolto em papel laminado para se proteger do coronavírus e dos invejosos, que insistem maldosamente em persegui-lo e em tentar evitar o colapso da saúde pública. É como se ele viesse com trajes do futuro dizer que vai ficar tudo bem: a pandemia continua a todo vapor, mas não vai ser dessa vez que ele vai se contaminar numa apresentação musical da banda Jeito Moleque.
Agora nos encontramos mais uma vez diante de um desafio, como recentes, quase estreantes, animais racionais que somos: como comemorar os gols quando esse ser humano vestir a camisa que em tempos mais inocentes a gente achou que era nossa? O futebol segue cada vez mais enlouquecedor para qualquer pessoa com um coração e um cérebro no mesmo corpo.
O show não pode parar
E se o show do grupo Jeito Moleque não pode parar, não vai ser a Copa do Brasil que cumprirá esse papel. Mas esporte desafiador da razão chamado futebol pode também muitas vezes revelar-se um entretenimento enfadonho, como as semifinais dessa competição nos mostraram. E digo mais: seguirá cada vez mais enfadonho se atitudes drásticas não forem tomadas. Por exemplo, por que já na saída de bola cada time fica todo em seu próprio campo? Isso só perpetua a cultura da retranca. Se no toque inicial as equipes já estivessem todas no campo adversário, assim que fosse dado o apito, o jogo imediatamente se transformaria numa correria emocionante e desesperada.
Mas são sugestões racionais demais para serem incorporadas. A verdade é que, assim como previ aqui, o São Paulo tem imensas dificuldades contra equipes que não são treinadas por Rogério Ceni e caiu diante do agora finalista Grêmio. Daniel Alves não conseguiu se impor mais que a própria natureza anti-desportiva do futebol, o artilheiro Brenner talvez nem saiba que o jogo já acabou, e Juanfran sempre me pareceu prestes a esfarelar em campo a qualquer momento.
Do lado do outro finalista, o Palmeiras, preocupação: quem vive o futebol há muito tempo sempre desconfia de times cujo destaque é o zagueiro, e nesse caso alguns torcedores novatos e pontuadores de Cartola em geral podem não gostar do que vou dizer, mas sinto informar que o destaque palmeirense é o zagueiro Gustavo Gómez. Péssimo sinal.
Na partida contra o Libertad, mesmo esterilizado após uma bolada nas partes íntimas e perdendo massa encefálica num choque de cabeça, o atleta permaneceu em campo graças à vontade de vencer e, acima de tudo, ao respeito contratual com seu empregador. E agora contra o América-MG, mais uma partida consistente cumprindo a principal missão de um zagueiro no futebol: impedir que o jogo flua, que os gols aconteçam e que o sofrido e contaminado torcedor brasileiro coloque um sorriso no rosto.
Destaque da semana: Vanderlei Luxemburgo
Recém demitido do próprio Palmeiras, Luxemburgo está de volta aos braços do torcedor vascaíno, que há anos não grita mais "o campeão voltou", contentando-se apenas em gritar "o respeito voltou", ou seja: ao Vasco qualquer coisa tá bom desde que não seja humilhante demais. Sorte ao Luxa e aos milhões de despedaçados corações vascaínos.
Essa coluna não reflete nem minhas próprias opiniões. Escrevo enquanto discordo veementemente de minhas próprias palavras.
Craque Daniel é apresentador do Falha de Cobertura, (supostamente) ex-jogador, empresário de atletas e inocentado de todas as acusações feitas contra ele.
(Personagem interpretado por Daniel Furlan, um dos criadores da TV Quase, que exibe na internet o Falha de Cobertura e Choque de Cultura.)