O sonho praiano x a realidade da instituição financeira
Estava calor e parecia mais um velho embate entre Mano Menezes x Celso Roth num domingo qualquer do campeonato gaúcho. Mas era a final da Taça Libertadores da América no Maracanã. E não era domingo, era sábado.
Era sábado e estava calor quando no último minuto, como dejetos de pombo que caem sobre nossas cabeças nos momentos mais inesperados, o gol do título cai literalmente do céu na cabeça de um daqueles jogadores que mal sabemos o nome, mas que numa testada raivosa, seja lá quem for, estufa as redes como quem diz: "Fiquem tranquilos. Vocês não precisam mais ver esse jogo." E assim fomos libertados de mais de 100 minutos de tortura que ainda ameaçavam uma prorrogação.
Agora a massa de idosos praianos chora enquanto os palmeirenses comemoram, enjaulados e quarentenados enquanto gritam pelas janelas para que seus vizinhos enfiem objetos no ânus. Foi-se o tempo em que o brasileiro aglomerava-se livre pelas ruas contentando-se com comemorações que exaltavam apenas a própria equipe enquanto virava carros de cabeça para baixo. O torcedor vândalo que respeita a quarentena hoje é obrigado a depredar o próprio patrimônio enquanto grita impropérios arbitrários de fixação anal. O estágio anal deveria terminar por volta dos três anos de idade, mas no ambiente futebolístico ele parece permanente.
É bem verdade que a ausência de torcida libertou os atletas para poderem dar a entrevista do título dizendo que a torcida não ajudou em absolutamente nada. Os agradecimentos se limitaram ao Departamento Médico, às famílias negligenciadas em casa e, obviamente, ao sobrenatural, que nessa época do ano se ocupa quase que exclusivamente da recuperação de futebolistas contundidos e decisões de títulos. Talvez até por isso a questão sanitária tenha saído tanto de controle.
Felipe Melo, o atormentado crônico
Mas como é bom ver que pelo menos Felipe Melo continua o mesmo: não há título ou glória suficientes para acalmar seu coração e impedir que suas declarações depois do apito final sejam amarguradas e cheias de recados criptografados para inimigos que não sabemos quem são, mas temos que ficar ouvindo mesmo assim.
Dessa vez, entretanto, seu eterno estado de estresse se justifica. Pela sua experiência, ele sabia que estar na final da Libertadores, Copa do Brasil e na parte de cima do Brasileiro é um problema disfarçado de bênção: é a raríssima posição de poder perder as duas finais e ainda não levar vaga na próxima Libertadores, numa grande sequência vexatória. Mas dessa o Palmeiras escapou e já pode perder todas as demais competições tranquilo até o fim da temporada.
Marinho, reflexo do treinador e sombra de si mesmo
Cuca talvez tenha protagonizado o único lance digno de Libertadores do jogo: ao tentar devolver uma bola, o técnico do Santos embolou-se com a rigidez da própria calça skinny e caiu, retardando a partida. Acabou expulso e um adversário misterioso fez o gol do título logo na sequência.
O principal comandado de Cuca, Marinho, por sua vez era um espelho opaco de seu chefe, correndo como que com uma skinny jeans hiper-apertada imaginária que fazia com que ao invés de dar sequência na jogada, suas pernas procurassem embolar-se com as do adversário à procura de faltas. Esperava-se mais do único capaz de tirar o jogo do marasmo. A narrativa do time de garotos desacreditados que vencem no fim estava pronta, mas bastou o choque com um clube patrocinado por uma instituição financeira para que o sonho praiano derretesse num dia de calor.
O sonho praiano acabou
O sonho praiano acabou e a Conmebol respira aliviada: nos bastidores já havia o temor de que se Pará se sagrasse tricampeão, as regras da competição, do próprio futebol e talvez da física tivessem que ser revistas.
O sonho praiano acabou e Abel Ferreira segue em sua saga para chamar a atenção de Marcelo Gallardo, e conquistar de vez a amizade que tentou sem sucesso estabelecer no final do jogo contra o River Plate, como um jovem que se forma em Engenharia Elétrica na tentativa desesperada de conquistar a aprovação do pai. Desnecessário dizer que é em vão.
O sonho praiano acabou e o SBT passou a partida inteira exaltando a própria programação enquanto a história do futebol sulamericano era escrita. Não há nada mais importante na transmissão do SBT do que a própria transmissão do SBT. O sonho praiano acabou e passamos 100 minutos ouvindo sobre Chiquititas, Eliana e Celso Portioli. E que estava calor.
Mas acima de tudo, o sonho praiano acabou porque os sonhos praianos sempre acabam quando batem de frente com a realidade da instituição financeira. E o sonho praiano acabou porque os sonhos praianos sempre acabam num dia de calor.
Essa coluna não reflete nem minhas próprias opiniões. Escrevo enquanto discordo veementemente de minhas próprias palavras.
Craque Daniel é apresentador do Falha de Cobertura, (supostamente) ex-jogador, empresário de atletas e inocentado de todas as acusações feitas contra ele.
(Personagem interpretado por Daniel Furlan, um dos criadores da TV Quase, que exibe na internet o Falha de Cobertura e Choque de Cultura.)